Sabe?

Sabe aquele dia em que você acorda com vontade de dormir?
Em que o Sol parece tão quente e desanimador?
Dia em que um banho frio é tão gostoso como chá de boldo sem açúcar?
Em que os passarinhos cantam tão bonito e desafinados e atrasados?
Em que seu mau hálito ofende até o cara do espelho?
Dia em que os chinelos desaparecem?
Dia em que o despertador parece um serial killer?
Em que a remela SuperBonder acorda mais cedo que você?
Em que a vizinha de cima dormiu de salto-agulha e roncou?
Em que o travesseiro lembra colo de mamãe?
Em que um iceberg passou a noite em seu quarto?
Dia em que um suicídio seria terapêutico?
Em que tudo é sem sentido leste-oeste?
Em que o outro lado da cama é tão imenso quanto o Saara?
Dia em que os lençóis donzela-de-ferro são boa companhia?
Em que sua música preferida provoca náuseas e cólica?
Dia em que se pensa se não teria sido melhor… ou…?
Em que um sorriso é um convite pra uma luta de rolar no chão?
Em que os monstros embaixo da cama são de pelúcia?
Pois é.
Meu dia não acordou assim.
Há dias.

(scs, 10913)

Entre o sono e sonho (Fernando Pessoa)

Entre o sono e sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre —
Esse rio sem fim.

(fonte)

o sono (Álvaro de Campos)

O sono que desce sobre mim,
O sono mental que desce fisicamente sobre mim,
O sono universal que desce individualmente sobre mim —
Esse sono
Parecerá aos outros o sono de dormir,
O sono da vontade de dormir,
O sono de ser sono.

Mas é mais, mais de dentro, mais de cima:
E o sono da soma de todas as desilusões,
É o sono da síntese de todas as desesperanças,
É o sono de haver mundo comigo lá dentro
Sem que eu houvesse contribuído em nada para isso.

O sono que desce sobre mim
É contudo como todos os sonos.
O cansaço tem ao menos brandura,
O abatimento tem ao menos sossego,
A rendição é ao menos o fim do esforço,
O fim é ao menos o já não haver que esperar.

Há um som de abrir uma janela,
Viro indiferente a cabeça para a esquerda
Por sobre o ombro que a sente,
Olho pela janela entreaberta:
A rapariga do segundo andar de defronte
Debruça-se com os olhos azuis à procura de alguém.
De quem?,
Pergunta a minha indiferença.
E tudo isso é sono.

Meu Deus, tanto sono!…

(Heterônimo de Fernando Pessoa)

à noite

não sei imaginar o fel
na dobra da pele
ou o rancor que não fere
ao contemplar os olhos vazios

mas há descaso no vento
e nas mãos que não querem ondas,
somente desacenos cínicos
outrora pássaros de asas duras

o que persiste ainda almeja
a manhã sem orvalho e ninho,
permeado de sonho e fastio,
firme, ainda que inconstante o pesar.

e adormece, sem cobrir o torso,
nos musgos que fumegam à noite.
a canção do tempo perdido embala o sono
e a chuva fina faz tudo findar