Ela não entendia a razão daquela felicidade. A manhã estava sombria, fria, sem qualquer encanto. Na imensa casa vazia ecoava sua solidão. As mãos e os pés esfregavam-se aflitos, tentando eliminar o frio. Nenhuma boa lembrança, real ou fantasiada, vinha consolar-lhe o coração. No entanto, nunca estivera tão feliz!
280
inigualável
solidão
eivada
de
outros
solitários
mil dias
por mil dias guardei teu silêncio sobre meus braços
e não sabia mais o que devia desejar
na manhã de nuvens em brancos pedaços
outra despedida de outono, um afago sem olhar
por mil dias contemplei teu sorriso no lago tranqüilo
águas turvas da memória eterna que revive
carregando suspiros de doce voz no sigilo
com que chamaste o nome que eu outrora tive
por mil dias fugi por entre os arbustos mortos
com medo de não acordar, não ser reconhecido
trilha áspera como os pensamentos incertos, tortos
de sons e ternuras e nenhuma paz que tenha vivido
por mil dias fingi reconhecer teu rosto em cada pedra
uma frieza de limo sorrindo sem vida
mergulhada na incerteza de quem não eras
– um desabafo sem força, cheio de medo da despedida
por mil dias voltei a procurar-te no ninho e no alto do monte
angustiada – como será ainda o que não sei se preciso? –
derramando gotas de sangue nos pedregulhos e na fonte
fertilizando sementes, flores sem cor, de aroma indeciso
e, ao final daqueles outonais mil dias,
quedo-me de novo, como no início, só
tomada daquela mui antiga saudade
guia angustiosa dessa minha estranha jornada
contemplo-me na areia que reluz prateada
refletindo à sombra o sonho da realidade
espalho de meus tantos pensamentos sem dó
o fim da visceral busca: a mim já não querias
(scs, 23115,918)
Prestuplenie i Nakazanie
como se não bastasse
de novo como ontem
o sonho se fez pranto
e a vida, como torto espanto,
transcorre, corrente de sangue, loucura
tímida, entre raios da lua
diminuta intensidade de amor
suave incerteza de tamanha dor
e de novo a mesma-sempre
a diversa, a nunca-outra
aquela que permanece ainda-ser
e percorre-me silente, sem temer
com gana, violenta candura
e arranha os poros e soletra, nua,
todas as mesmas insanas presenças
aninhadas no corpo quais febris doenças
e como se não morressem
o infindo retorno e a colisão
esmera-se em lapidar a rude jóia
e a carregar na superfície tênue inglória
folhas e olhos e doçura
e a firme dúvida que corrói, crua,
e cria monstros e os conforta
depois foge assustada e deixa aberta a porta
mui assustada com plasma e vísceras
corre louca solidão adentro
arrastando seu vestido branco
rasgado, com manchas de limo no flanco
com vestígios da tensa manhã escura
ainda sorrindo indefesa e vil (sua)
grita com voz surda e triste
na ponte orvalhada que não mais existe
e como se não soubesse
há ainda outro desatino
imperfeito como o ouro puro
e o talho nas costas, feio e escuro,
verte sofismas e uma nuvem impura
minúsculos tesouros cortados – que os possua! –
imersos em lava e alga
fugindo no cavalo cego que cavalga
ah! por que não recomeçam
e se materializam em
diademas de mãos espalmadas em flor
em vastos campos de folhas cinza e calor
de outonais repouso e ternura
da imorredoura saga final. e lhe retribua
o sono inócuo sem fim
e a lamúria que se finda tonta em mim
(scs, 10210)
quantos
quantas coisas a noite esconde
em meus braços frios
nos pensamentos sem fim
confinado na estrondosa solidão desse quarto
quantos segredos espalhados pelas paredes
vislumbrando aquele passado já não mais inventado
de desenhos na areia do mar
um repentino aceno e o fim
quantos momentos aprisionados no relógio parado na cabeceira
gritando sua inexistente presença e dor
em cada conflito refeito e os medos
ainda mais meninos e não os há
– só as pegadas indistintas no pó
quantos carinhos amordaçados nos cabides
entregues ao desprezo e ao vazio
tantas manhãs de outrora: eram luzes
nem deles memória nem saudade
quantas madrugadas de anseios recatados
debruçadas na janela fechada
as nuvens distantes flertando com o desespero
refrescam seus cabelos de cinzas e remorsos
quantos outros navegam a mesma alma
ao revirar das lembranças desgovernadas
– a goteira é o único som consolador
na estrondosa solidão desse sonho inquieto
(scs, 8815)
soneto do sono perdido
a última alegria que guardo
é da triste despedida
e, depois, a viagem incerta
tão imensa
na escura noite de solidão
a lua prateada me era por única companhia
na multidão que também ia
sem saber
nem me deixei chorar
de risos tantos que nunca tive
na plena felicidade que agora
era nunca mais
à noite, acordado no quarto frio,
abraço a lembrança em torno do travesseiro
e não sei mais se vivo ou desisto
de sonhar
(scs, 141216)
sem título
ah!
a solidão dos silêncios
num dia de tanta felicidade
e tudo o que há é esse vazio
embalado por teu carinho
e nossa música
ele e ela
o
casal
conversava
com
silêncios
eternos
o
casal
silenciava
as
conversas
(con)(a)vulsas
o
casal
sofria
em
silêncio
altivo
o
casal
conversava
com
esquivos
silêncios
o
casal
sentia
silenciar
suas
conversas
o
casal
contemplava
o
silêncio
fortuito
o
casal
soluçava
seu
silêncio
solitário
o
casal
inexistia
lado
a
lado
ele
era
ele
ela
era
nunca
ele
(s)em
remorsos
ela
(s)em
lágrimas
ele
sempre
ausente
ela
sempre
amanhã
ele
mesmo
ali
era
um
vazio
ela
mesmo
não
sabia
ser
mais
um
casal
se
desconhecia
ao
amanhecer
o
casal
remoía
os
lúgubres
silêncios
ele
só
momentos
ela
sempre
esperança
ela
silenciava
ele
silenciava
solidão
gritava
ele
ela
o
casal
nenhum
deles
ele
um
dia
sorriu
ela
corou
os
dois
conversavam
com(o)
cúmplices
silêncios
o suco
Trazia por nome Daniel. Como aquele que não teve medo de leões. Não tinha. Mesmo não conhecendo. Os tratos tantos do mundo lhe asseguravam.
Era um rosto sem sorriso nem palavras. No olhar, uma paz amarga bem assentada; o amanhã não era longe nem assustava. A pele marcada das muitas madrugadas em que o sono era só lembrança,
a testa sombria do peso imenso presenteado pelos muitos ontens. As mãos grandes, sulcadas da lida no campo, esboçavam um caminho ocasional, mas nunca permitido. Secavam as poucas lágrimas que raramente fugiam. O cabelo grisalho que o vento levantava sem esforço dizia que existia há muito, por dias infindáveis.
Sentado à sombra da árvore, tão solitária no vasto mundo como ele, mordia lento a fruta doce, o sumo pingando pelo canto da boca não incomodava. O dulçor ácido lembrava que nem tudo fora sempre desamparo. Mastigava sem vigor, desfrutando da polpa macia, os olhos repousados no lá longe, numa nuvem pequena no horizonte. Única nos céus. Tudo falava de ser só.
O ambiente era silêncio. Nem vento soava nas muitas folhas, pássaros emudecidos voavam distantes, o riacho fugia sem voz. A multidão de seus pensamentos gritava em sua mudez. Tantas coisas, mementos, o passado que podia ter sido, o que não queria, tudo que teve de, o dia aquele… As idéias giravam, gritavam, coloriam, riam, zombavam, se desvaneciam uma antes da outra e também depois, deixando tudo mais confuso e vazio, sem gosto, como se nunca estivessem ali.
Novo naco da fruta. O único barulho era aquele.
Piscou os olhos com força, como se isso o mantivesse vivo e afastasse os leões, os que não havia, mas existiam por ali, querendo tragá-lo, andando ao redor de dentro dele. Funcionou. Eles se afastaram por uns dias, talvez. O suco doce seco no braço atraiu uma abelha, zunindo de encher os ares, um som imenso de vida inquieta.
Mal teve tempo de lhe voltar os olhos e um sorriso minguado lhe escapuliu dos lábios. Logo morreu, não sem antes germinar-se em esperança.
Ficou ali, assim, agora pálpebras fechadas, vendo só com a alma.
Arrastava pela vida o nome de Daniel. Não sem luto ou desespero. Teimosia de viver. O suco.
(poa, 151214)
cheguei à ilha
I
O pé na água. Fria.
A areia. Caminho. Dois passos apenas. Os primeiros.
O barco já se vai. Muito rápido. Como que
arrependido de ter vindo. Como eu. Talvez.
II
O Sol brilha na espuma muito branca
da onda outra onda outra onda
que chega à praia, molham-me,
ainda na água. Dois passos apenas.
E a água já os apagou. Já não sou. Já não cheguei.
III
À direita, rochas, molhadas e secas,
algas, pequenas piscinas, peixinhos aprisionados.
À esquerda, a areia como sem fim, sem pegadas,
lambida pelo mar
brilhando diamantes sem valor ao Sol.
Coqueiros, árvores, nuvens, mar.
A eternidade se derrama na praia. Cansada.
À frente, a areia branca forma uma sala
de árvores grandes na parede;
no meio delas, uma trilha impassada
sobe um morro lá acima visto,
sombrio, enegrecido de um mistério,
pássaros rapinando o guardam.
Em mim, solidão,
uma mochila vazia às costas,
os pés na água
e o frio e o silêncio só das ondas
e a cor do céu borrado de nuvens
e o barco que já foi
e os passos que já foram.
E eu.
IV
o tempo não existe quando não é medido
quando não sei o que é quando
não há marcas sinais pontuação
só um passar e outro
como as ondas ali
que são as mesmas sendo sempre outras
e as nuvens desaparecem voltam as mesmas-diferentes
a imprecisão dos pensamentos que nunca somem
vão retornam são mudam insanos inlúcidos transparentes avessos
e sei ou talvez só imagine que já é outro(s) dia
pois o sol se foi quando não vi
a luz iluminou o que não vi
nasceu outro dia no dia anterior
e nada é mais o que é hoje
o tempo na ilha é a própria ilha
V
O pássaro ferido na areia branca
manchou a areia com seu sangue vermelho
a onda verdazul lavou a areia
e levou o pássaro
que não sabia nadar.
De ferido não sabia voar.
O mar não perdoa e a areia não tem memória.
VI
Caminho sem extensão pela areia à esquerda,
longe da sala-de-árvores.
Há um temor estranho por me afastar
pela primeira vez
(mas não sei o tempo nem o ontem)
do ninho seguro, o recanto,
o onde sou-na-ilha.
Caminho.
Cada passo já não é — os deixo
onde as ondas possam carregá-los,
feridos como o pássaro,
não sabem voar nem nadar.
Afogam-se e já são apenas outrora.
Desfaço-me em cada passo de meu passado,
aquele que não tenho,
que ainda vou viver, mas não o quis,
na estranha certeza de que há mais de outra em mim
e de que não nos encontramos ainda.
Talvez eu esteja caminhando até ela,
mas tenho medo de prosseguir.
Aqui, entre céu, palmeiras e água,
ondas mais bravias,
desisto da loucura,
corro corro corro
de volta ao escondido.
Segura, enfim.
VII
O mar devolveu o pássaro
morto
à praia.
Apodrecido.
VIII
A noite está escura. A Lua foi devorada por nuvens escuras.
O mundo todo desapareceu.
Não quis acender a fogueira. Quero a inexistência do que não posso ver
oculto pela escuridão.
O mar está silencioso, como se não.
As árvores não sussurram seu raspar de folhas.
Nenhum dos animais, nem a fera, ruge, pia, chora, gargalha.
A noite está escura.
Meus olhos se fecham. E tudo brilha.
IX
Não é solidão eu estar aqui sem mais ninguém
no imenso mar a minha frente
a meu redor
a única no imenso mar
sem ondas transparente morno silencioso.
Sou sua única mancha, uma nódoa flutuante,
como foi antes o pássaro morto,
mas estou viva. Penso.
X
Minhas pegadas nas areias saem de mim
e voltam para mim. Eu me trago a mim mesma
todos os dias, para me apresentar,
tentar ser minha amiga — ainda que não confie
não me sinta à vontade. É estranho
alguém tão estranho, solitária morna silenciosa
opaca.
Não me conheço os olhos, não me encara,
como se tivesse medo de mim, de eu a transparecer,
de sondar-lhe o mistério de ser quem é
ou de ter sido.
Sentamo-nos as duas, lado a lado, ao crepitar da fogueira,
em cúmplice e desconfortável silêncio. Como um estrondo.
A fogueira morre. Ainda estamos aqui. Só eu.
XI
sonhei de novo que eu estava num deserto
vasto azulado
rasgado por um fio dágua
e que a água ia se transformando em leite ou sangue
e meus pés se banhavam nela doloridos
o rio me tingia com sua cor eram cores
e ia me transformando em um pássaro imenso assustado
frágil como um suspiro de saudade com sua dor
e o mar chegava até meus joelhos gélido
o pássaro morto na areia a água levava
e ele sumindo sendo feito parte da água
no deserto
acordo. de novo
XII
Escutei uma música no ar. Acompanhada de perfumes. Tudo sibilante
rompendo a manhã,
fazendo-me uma estranha companhia. Uma invasão, uma avalanche,
um chamado. Um brado.
Não sei de onde vem. Está por toda parte,
na minha pele, molhada do mar,
luzindo como uns pequenos olhos curiosos,
sondando-me, ecoando dentro de mim,
revirando uns quartos escuros, lembranças do que nunca fiz,
mais notas, mais aromas.
A música me envolve, tomando forma,
soprando uma voz que não era minha, mas saía de outra eu,
acusando-me de ter fugido,
batendo em meu rosto com raiva,
um compasso firme, marcial, de marcha para o cadafalso,
o aroma queimado, flores pisoteadas pelo
caminho. Caminho.
Fujo. Quero correr para um não-lugar,
um distante de mim, ausente de eu ser,
mas a música segue, altitrovejante,
grudada em minhas carnes,
se enroscando em minhas pernas, me derruba
e a onda molha meu rosto, algas no meu cabelo,
a música vindo em ondas, e também nas outras,
e o perfume, agora de uma doce acidez,
revira minhas entrahas, arde,
queima a mão debaixo dágua,
arranca um grito com sangue:
– Eu fui! Eu era, mas não escolhi! Eu fui ela!
E a música cessou. O perfume morreu. As ondas se foram. O tempo
voltou a estagnar. Meu coração
sentia a extravagância da paz de novo.
Finalmente, eu.
I
O pé na areia. Fria.
A água. Caminho. Dois passos apenas. Os últimos.
O barco já se vai. Muito rápido. Como que
arrependido de ter partido. Como eu. Talvez.
(scs, 1313)