sem título

o que era de fato
nem mesmo pensamos
no entanto sim estava
e por isso tão solene
como a noite e uma
gota de sangue ou lágrima
de toque macio e não
tão simples sendo assim
que surpresa já sempre
um anelo não uma ausência
de poucas cores mas doçuras
nem haveria em nenhum canto
o aroma de que fizemos
o outro sonho da alegria difusa
bem de manhã sem lençóis
piso frio caminha tonto
e florejam liláses a nuvem
miúda nos diz o Nome e
lembramos nada somos
só desejos e saudade

(sp, 25813)

um menino e outros

do telhado
um menino sentado vejo outros
meninos sentados em tantos
telhados
das poucas tantas casas do mundo
olhando
o horizonte sem esperança nos sonhos
alegres dos meninos penso
no que vêem do telhado cada um
sob o céu escuro da cidade já dormindo
e triste canto
em voz baixa
com medo de acordar os outros meninos
em distantes telhados cada qual
um rascunho de gente
e já tão gasta e sem sorrisos
o canto some
e fica só a noite derramada sobre
os telhados e os meninos
que vão se apagando aos poucos os tantos
como as estrelas engolidas pelas nuvens
e silenciam
seus sonhos coloridos sobre as casas sem cor
e em cada telhado
repousa só um corpo magro que não canta mais
um menino

(scs, 71213)

A noite não me deu nenhum sossego (William Shakespeare)

Como voltar feliz ao meu trabalho
se a noite não me deu nenhum sossego?
A noite, o dia, cartas dum baralho
sempre trocadas neste jogo cego.
Eles dois, inimigos de mãos dadas,
me torturam, envolvem no seu cerco
de fadiga, de dúbias madrugadas:
e tu, quanto mais sofro mais te perco.
Digo ao dia que brilhas para ele,
que desfazes as nuvens do seu rosto;
digo à noite sem estrelas que és o mel
na sua pele escura: o oiro, o gosto.
Mas dia a dia alonga-se a jornada
e cada noite a noite é mais fechada.