De risos e morte

o homem,
de tão feliz,
ria sozinho noite afora
sem se importar
com os que
dormiam de tristeza
com as janelas fechadas
com o coração frio

e ria sua alegria desinteressada
pelas ruas e jardins
sem nem notar
a chuva que chorava
as mágoas de toda a cidade

ia rindo sua alegria descabida
pelas ruínas do velho casarão
de tantas memórias sombrias
e pelos corredores do hospital
de aleijados e parturientes
que pensaram, por um instante,
que podiam também rir

e seguia rindo ao lado do rio
entre homens magros e famintos
e mulheres exploradas (hematomas)
e crianças ranhentas jogando futebol
sem sorriso

e seu riso gostoso, intenso,
quase imoral
inquietou o ancião, que lhe jogou uma pedra e um deboche,
mas uma criança sorriu
uma mulher sacudiu-se rindo com a agulha na mão
um homem dançou com a muleta
a jovem na janela fechada ficou pensando se poderia…

sua insana viagem seguia;
dele, o homem que sorria,
a risada já ia longe
poluindo com sua leveza o ar de chumbo
daquela cidade mórbida:

deixava para trás
irados homens sórdidos
escandalizadas senhoras carolas que emudeceram o riso e a fé
muitos indiferentes transeuntes que não sabiam se estavam vivos
e
dois ou três loucos
que continuavam rindo e indo
enquanto a morte os perseguia
na cidade que morria

(scs, 13913)

cheguei à ilha

I
O pé na água. Fria.
A areia. Caminho. Dois passos apenas. Os primeiros.
O barco já se vai. Muito rápido. Como que
arrependido de ter vindo. Como eu. Talvez.

II
O Sol brilha na espuma muito branca
da onda outra onda outra onda
que chega à praia, molham-me,
ainda na água. Dois passos apenas.
E a água já os apagou. Já não sou. Já não cheguei.

III
À direita, rochas, molhadas e secas,
algas, pequenas piscinas, peixinhos aprisionados.
À esquerda, a areia como sem fim, sem pegadas,
lambida pelo mar
brilhando diamantes sem valor ao Sol.
Coqueiros, árvores, nuvens, mar.
A eternidade se derrama na praia. Cansada.
À frente, a areia branca forma uma sala
de árvores grandes na parede;
no meio delas, uma trilha impassada
sobe um morro lá acima visto,
sombrio, enegrecido de um mistério,
pássaros rapinando o guardam.
Em mim, solidão,
uma mochila vazia às costas,
os pés na água
e o frio e o silêncio só das ondas
e a cor do céu borrado de nuvens
e o barco que já foi
e os passos que já foram.
E eu.

IV
o tempo não existe quando não é medido
quando não sei o que é quando
não há marcas sinais pontuação
só um passar e outro
como as ondas ali
que são as mesmas sendo sempre outras
e as nuvens desaparecem voltam as mesmas-diferentes
a imprecisão dos pensamentos que nunca somem
vão retornam são mudam insanos inlúcidos transparentes avessos
e sei ou talvez só imagine que já é outro(s) dia
pois o sol se foi quando não vi
a luz iluminou o que não vi
nasceu outro dia no dia anterior
e nada é mais o que é hoje
o tempo na ilha é a própria ilha

V
O pássaro ferido na areia branca
manchou a areia com seu sangue vermelho
a onda verdazul lavou a areia
e levou o pássaro
que não sabia nadar.
De ferido não sabia voar.
O mar não perdoa e a areia não tem memória.

VI
Caminho sem extensão pela areia à esquerda,
longe da sala-de-árvores.
Há um temor estranho por me afastar
pela primeira vez
(mas não sei o tempo nem o ontem)
do ninho seguro, o recanto,
o onde sou-na-ilha.
Caminho.
Cada passo já não é — os deixo
onde as ondas possam carregá-los,
feridos como o pássaro,
não sabem voar nem nadar.
Afogam-se e já são apenas outrora.
Desfaço-me em cada passo de meu passado,
aquele que não tenho,
que ainda vou viver, mas não o quis,
na estranha certeza de que há mais de outra em mim
e de que não nos encontramos ainda.
Talvez eu esteja caminhando até ela,
mas tenho medo de prosseguir.
Aqui, entre céu, palmeiras e água,
ondas mais bravias,
desisto da loucura,
corro corro corro
de volta ao escondido.
Segura, enfim.

VII
O mar devolveu o pássaro
morto
à praia.
Apodrecido.

VIII
A noite está escura. A Lua foi devorada por nuvens escuras.
O mundo todo desapareceu.
Não quis acender a fogueira. Quero a inexistência do que não posso ver
oculto pela escuridão.
O mar está silencioso, como se não.
As árvores não sussurram seu raspar de folhas.
Nenhum dos animais, nem a fera, ruge, pia, chora, gargalha.
A noite está escura.
Meus olhos se fecham. E tudo brilha.

IX
Não é solidão eu estar aqui sem mais ninguém
no imenso mar a minha frente
a meu redor
a única no imenso mar
sem ondas transparente morno silencioso.
Sou sua única mancha, uma nódoa flutuante,
como foi antes o pássaro morto,
mas estou viva. Penso.

X
Minhas pegadas nas areias saem de mim
e voltam para mim. Eu me trago a mim mesma
todos os dias, para me apresentar,
tentar ser minha amiga — ainda que não confie
não me sinta à vontade. É estranho
alguém tão estranho, solitária morna silenciosa
opaca.
Não me conheço os olhos, não me encara,
como se tivesse medo de mim, de eu a transparecer,
de sondar-lhe o mistério de ser quem é
ou de ter sido.
Sentamo-nos as duas, lado a lado, ao crepitar da fogueira,
em cúmplice e desconfortável silêncio. Como um estrondo.
A fogueira morre. Ainda estamos aqui. Só eu.

XI
sonhei de novo que eu estava num deserto
vasto azulado
rasgado por um fio dágua
e que a água ia se transformando em leite ou sangue
e meus pés se banhavam nela doloridos
o rio me tingia com sua cor eram cores
e ia me transformando em um pássaro imenso assustado
frágil como um suspiro de saudade com sua dor
e o mar chegava até meus joelhos gélido
o pássaro morto na areia a água levava
e ele sumindo sendo feito parte da água
no deserto
acordo. de novo

XII
Escutei uma música no ar. Acompanhada de perfumes. Tudo sibilante
rompendo a manhã,
fazendo-me uma estranha companhia. Uma invasão, uma avalanche,
um chamado. Um brado.
Não sei de onde vem. Está por toda parte,
na minha pele, molhada do mar,
luzindo como uns pequenos olhos curiosos,
sondando-me, ecoando dentro de mim,
revirando uns quartos escuros, lembranças do que nunca fiz,
mais notas, mais aromas.
A música me envolve, tomando forma,
soprando uma voz que não era minha, mas saía de outra eu,
acusando-me de ter fugido,
batendo em meu rosto com raiva,
um compasso firme, marcial, de marcha para o cadafalso,
o aroma queimado, flores pisoteadas pelo
caminho. Caminho.
Fujo. Quero correr para um não-lugar,
um distante de mim, ausente de eu ser,
mas a música segue, altitrovejante,
grudada em minhas carnes,
se enroscando em minhas pernas, me derruba
e a onda molha meu rosto, algas no meu cabelo,
a música vindo em ondas, e também nas outras,
e o perfume, agora de uma doce acidez,
revira minhas entrahas, arde,
queima a mão debaixo dágua,
arranca um grito com sangue:
– Eu fui! Eu era, mas não escolhi! Eu fui ela!
E a música cessou. O perfume morreu. As ondas se foram. O tempo
voltou a estagnar. Meu coração
sentia a extravagância da paz de novo.
Finalmente, eu.

I
O pé na areia. Fria.
A água. Caminho. Dois passos apenas. Os últimos.
O barco já se vai. Muito rápido. Como que
arrependido de ter partido. Como eu. Talvez.

(scs, 1313)

à vida

a Francisco Genciano

A vida,
ah! a vida, que se compraz complexa
em nos contemplar, interrogações tantas
– e seu fim, hoje vencido –
procurando ela respostas em nossas perguntas

Havida por desat(f)inado des(penhadeiro)afio
é antes ninho, impreciso abrigo
a ser percorrido com destemor, fé pensante,
com ternos afetos de misericórdia,
– a já abandonada tolice de criança –
um rio profundo e silencioso que leva
àquela vasta biblioteca, de corredores eternos:
tudo a se conhecer

Filosovida
fia tramas de brilhos tontos
na alma que se derrama
sabendo-se ínfima (mas desejosa
de tudo
de saber)

Irremediável (a)ventura
sempre nova loucura
uma navegação ao sabor do vento
sábio vento
as margens, paisagens inexploradas
os recantos, prantos abandonados
as encostas, respostas angustiadas
as colinas, rotinas e novidades
as montanhas, façanhas de amor
percorrer, sim, sem medo
a vida toda,
o vislumbrado enredo