Manhã

Ela acordava sempre profunda, solene, vendo
o que havia sob.
Pressentia invisíveis superfícies, arranhadas
de poeira cotidiana, uma falsa paz,
o silêncio corrompido de tédio e omissão.

Não.

O modo outro é que tinha de ser,
a revolução, o confronto de nariz na parede
– o sangue a escorrer impoluto, arrastando
verdades dores libertação espelhos –
resgatando dos escombros a vida
desatinadamente necessária
disposta a mais um dia

(scs, 18215, 33 anos depois)

finda

dormi com frio: estou viva
era sábado, não me lembro
mas sei, insensata, o aroma
entretecido com cabelos

rasguei as fotografias
o papel de presente amarelou
– nem mesmo o gesto de ciúme
livrou a angústia de tanta paz

outra manhã, e esta cinza
sim, o abraço, mas quando!
atenta, a gota última caindo
minha vasta ânsia por voar

sob a neblina, pensamentos diminutos
rasgados à ousada inércia
e, meteoro, o fim da vontade
deixo-me inerte, saudosa e finda

(scs, 14414)

galhos

tenho essa manhã nos meus olhos
o calor morno do abraço
enroscado nos galhos de lembranças tantas
que perambulam nas calçadas e nos cabelos molhados

mas era outra a manhã de hoje
– a névoa densa de pensamentos esguios
espiando incauta as cortinas do corredor iluminado
– já nem lembrava de ter vindo

o sossego era toda a manhã, sem nuvens
desafogada no riacho de lágrimas de tantos olhos
agora inquietos, amantes daquelas estrelas frias
inclinadas para ouvir a canção sussurrada ao vento tolo

e os galhos balançam

(Foto de Sam Javanrouh)

brumas

as brumas
afogam lembranças
brancas sem afago
desabrochadas de dor
loucas

as brumas
repetem canções afônicas
numa gentileza vaga
na manhã invisível
adoentada

as brumas
resistem à verdade
com máscaras dóceis
entalhadas em peles
pálidas

as brumas
desenham no chão
sombras sem alma
de sonhos e sons
abafados

as brumas
escondem seu rosto
sem riso ou tormento
despertado de amor
inconsolado

as brumas
balançam cabelos e saias
silvando ameaças
sem citar nomes
inesquecíveis

as bruams
enfurecem pombos e muros
com seu frio átono
sopro no vento
incolor

as brumas
recusam o abraço
ao desvalido à espera
do ônibus
insensíveis

as brumas
ocultam tantos segredos
remexendo caixas
e mansões
arruinadas

as brumas
entranham-se nas casas
madrugando à lareira
espiando velhas nudezes
imortais

as brumas
convalescem à mesa
repartindo as migalhas
ao cão e à mulher
catatônica

as brumas
impressionam as aves
atarefadas em ninhos
como no outono
moribundo

as brumas
mentem com rouquidão
sua bondade imensa
na faca com sangue
viscoso

as brumas
umedecem a calçada
e maltratam o cão
sem dono e a dona
maquiada

as brumas
calam os sussurros
de prazer e lençóis
esfriam amores
entrecortadas

as brumas
fofocam-se à toa
e não têm pudor
nem remorso
impedernidas

as brumas
arrastam correntes
medrosas e altivas
eis, pois, seu fim:
sol