coisas

eu guardo inexplicáveis lembranças:

a abandonada folha seca do dia
em que pela primeira vez te vi
o floco de neve que havia
na noite em que te esqueci

o guardanapo limpo de tafetá
do inesquecível piquenique a que faltei
a xícara suja de um insípido chá
da noite triste em que chorei

o poema rabiscado e incompleto
da manhã de amor que nunca veio
o abraço quente de mil afetos
roubado na multidão a olhos alheios

o lugar sempre vazio a meu lado
da longa viagem que nunca terminou
o sonho louco e amargurado
de que, de fato, nunca te amou

(scs, 4918)

(fonte da imagem)

Prestuplenie i Nakazanie

como se não bastasse
de novo como ontem
o sonho se fez pranto
e a vida, como torto espanto,
transcorre, corrente de sangue, loucura
tímida, entre raios da lua
diminuta intensidade de amor
suave incerteza de tamanha dor

e de novo a mesma-sempre
a diversa, a nunca-outra
aquela que permanece ainda-ser
e percorre-me silente, sem temer
com gana, violenta candura
e arranha os poros e soletra, nua,
todas as mesmas insanas presenças
aninhadas no corpo quais febris doenças

e como se não morressem
o infindo retorno e a colisão
esmera-se em lapidar a rude jóia
e a carregar na superfície tênue inglória
folhas e olhos e doçura
e a firme dúvida que corrói, crua,
e cria monstros e os conforta
depois foge assustada e deixa aberta a porta

mui assustada com plasma e vísceras
corre louca solidão adentro
arrastando seu vestido branco
rasgado, com manchas de limo no flanco
com vestígios da tensa manhã escura
ainda sorrindo indefesa e vil (sua)
grita com voz surda e triste
na ponte orvalhada que não mais existe

e como se não soubesse
há ainda outro desatino
imperfeito como o ouro puro
e o talho nas costas, feio e escuro,
verte sofismas e uma nuvem impura
minúsculos tesouros cortados – que os possua! –
imersos em lava e alga
fugindo no cavalo cego que cavalga

ah! por que não recomeçam
e se materializam em
diademas de mãos espalmadas em flor
em vastos campos de folhas cinza e calor
de outonais repouso e ternura
da imorredoura saga final. e lhe retribua
o sono inócuo sem fim
e a lamúria que se finda tonta em mim

(scs, 10210)

memórias a serem vividas

1.
sou
da
vida
umas
poucas
memórias

2.
lembranças
sem
início
de
mim
mesmo

3.
relembro
sem
sorrir
que
prossigo
ainda

4.
voltam
cedo
memórias
que
não
serão

5.
em
essência
os
fatos
nunca
passaram

6.
permanecem
como
rochas
acordadas
do
tempo

7.
imutáveis
sussurros
que
foram
vozes
rasgadas

8.
acordam
lembradas
dos
silêncios
entre
nós

9.
lembranças
despertadas
repetem
dores
cansadas
sonolentas

10.
um
amor
inesquecível
nunca
mais
existiu

11.
em
cada
sonho
um
novo
ontem

12.
registro
as
lembranças
– já
não
serão

13.
conflito:
fui
seria
passado
esperança –
trégua

14.
esquecidas
paisagens
por
ver
outras-
mesmas

15.
alegrias
revividas
dispersas
em
memórias
passageiras

16.
preciso
lembrar
de
voltar
a
ser

17.
eram
então
poucas
as
realidades
nascidas

18.
e
voltaram
sempre
novas
desde
amanhã

19.
em
seus
aromas
recados
do
futuro

20.
abraços
vastos
dados
ao
final:
começo

(sca, 271114, enquanto espero pelo cirurgião)

três violões

a Ricardo Ordovás Lopes

Eu os tenho.

No primeiro toco saudades inconclusas
com gosto de limonada, em volta da mesa
de ingênuas descobertas e tempo perdido,
um tempo de tão antes
que parece nunca ter sido
e ainda é.
Dissonantes notas telefônicas
de tempero quase infantil,
tolos códigos que a amizade exigia,
dos outros ao redor tão distintos,
que o tempo buscou apagar,
embalaram tanta imaginação na vida inspirada
e a vida mesmo levou pra longe.

Com o segundo, desafinado, canto da trilha solitária
descrita nas páginas infantis do diário
que fui fazendo ao caminhar
sem querer deixar marcas,
dores e cartilhas e buscas,
me antevendo em rostos e muros,
escondido no vento da longa jornada
abraçado pela noite em que a solidão
cantarolava rudes melodias
nascidas para serem selvagens: havia lugar para o amor!
amansadas pela rotina
e outros tantos desejos aninhados num coração pequenamente vasto,
à sombra de um amanhã feliz que eu mesmo fazia –
e já era de novo a hora do almoço.

O terceiro está silencioso.
Como eu.

Eu os tenho.
Não.
Eles a mim.

(scs, 23114)

as roupas e as memórias

Ele – o transitório – só se diga, por esse enquanto.
(João Guimarães Rosa)

em todos os armários espreitam
despedidas recentes em velhos álbuns
de cegas fotografias mentirosas

os vestidos acompanhavam o passado
venerando o assombro entre os olhos
– as mesmas pálpebras adormecidas de amor

anoitecida a memória: um terno cinza-mágoa
então, flores murchas, pele desbotada
marcas tão antigas na neve e no alpendre

galantes sapatos já não caminham, seguem
– almejaram o fim, a colheita, a fuga –
covardes no silêncio da esperança morta

todas as rugas na camisa puída
sem perfume ou marcas de sangue no bolso
insistem em ser nada e ódio solene

lenço jogado a um canto sem sono
devolve as lágrimas e o anel
arrependido que se findou

a gravata daquela noite inseparável
amordaça uns tímidos desatinos
com cheiro de mofo precoce

assim, todas as lembranças descartadas aguardam
em trajes de gala
o dia de acontecerem

(scs, 3414)

galhos

tenho essa manhã nos meus olhos
o calor morno do abraço
enroscado nos galhos de lembranças tantas
que perambulam nas calçadas e nos cabelos molhados

mas era outra a manhã de hoje
– a névoa densa de pensamentos esguios
espiando incauta as cortinas do corredor iluminado
– já nem lembrava de ter vindo

o sossego era toda a manhã, sem nuvens
desafogada no riacho de lágrimas de tantos olhos
agora inquietos, amantes daquelas estrelas frias
inclinadas para ouvir a canção sussurrada ao vento tolo

e os galhos balançam

(Foto de Sam Javanrouh)

Colégio Cruzeiro do Sul

foto03_colegio_francisco

corredores,
sino,
professores,
menino,
aluno
por vezes taciturno,
amores,
imenso prédio,
de corredores estreitos,
segredos,
esqueleto,
andares,
andava eu sonhando,
brincando,
buscando saber o que era.

paixões,
cadernos provas laboratório recreio
amizades eternas, tão finitas
e tanto tempo naquelas salas
e em tantas salas tantos
que hoje por aí seguem
e não são mais, só ex-colegas
(sem falar dos que (se) foram)

e o prédio é só lembrança
do tempo aquele
todo ele.

sino
na há mais o menino

(poa, 301012)