Não queria terminar mais um dia
sem escrever-te uma carta longa
nas folhas da calçada
e enviá-la pela mão suja do carvoeiro.
Vou contar-te do último mês:
nele a vida pareceu não passar,
surgindo comum sobre a mesa cada manhã,
sem respeito pelos dias de outrora.
E também não houve novena
nem colheita nem partos.
Parece que as vizinhas morreram
e as fofocas cessaram. O mundo esperava.
Lembrei-me de você certa manhã,
pois o dia estava quente e a árvore
fazia uma sombra envergonhada
no chão do meu quarto
e me fez pensar em sorrir
ou em correr para fora sem rumo,
como se fosse encontrar outra vida
ou as respostas no campo dos girassóis.
Então a sombra só me disse
para esperar um dia mais e outro.
E ainda não houve novidades
e chegou mais um final de tarde. Fim.
E foi mais ou menos assim
o mês, contado em dias comuns,
em horas tristes e cantos noturnos
de pássaros ocultos e esperançosos.
Tentei encontrar uma lembrança,
uma notícia importante a contar ou
algum recado da alma que
deveria te dar – uma anotação qualquer,
mas não encontrei nada e
revirei os baús e os canteiros
e nada senão a mesmice e ontem
e uma só sempre igual passagem de tempo
que você conhece tão bem: por isso
foi embora. E levou nas malas
a única alegria que havia por aqui,
mais bela que a nascente do riacho
– ele mesmo parece ter perdido a vontade
de cantar em meio às pedras.
A despedida é sempre uma dor
imensa que o coração tem de sofrer,
e a distância faz da lembrança que se tem
uma imagem que vai se desvanecendo
como o orvalho nas pedras
quando o Sol se acende pela manhã.
Então, pensei que te escrever, amigo,
pudesse manter por mais tempo escondido
o Sol e te manter, orvalho, mais
tempo comigo cada manhã.
Mas não parece funcionar…
Te vejo cada vez mais distante,
figura irreconhecível no cimo do morro
lá muito ao longe. Sei que é uma pessoa,
mas não vejo o rosto, a doçura do sorriso,
o que dizem os olhos, o suor na testa.
Te escrevo como quem sacode
a mulher que desmaia ou o recém-falecido,
querendo trazer de volta, impedindo a morte,
recusando-se a aceitar que a vida se vai,
que leva em sua saia o que se tem de
mais precioso e doce e amável.
Acho que a carta devo mandá-la
pra mim mesmo, pra me lembrar
que um dia você esteve aqui comigo
e viveu comigo minha vida e foi
parte dela. Preciso ler isso pra voltar
a ser quem já não sou e me reencontrar
na certeza de que você não é uma mera
invenção de minha alma sempre tão só.
Sim, você nunca vai saber que escrevi.
É melhor assim. Talvez eu lhe seja
um cadáver voltando do além
para assombrar seus dias agora felizes,
e só quero poder viver aqui, debaixo da
árvore que ainda é tímida
e vendo a vida sem novidades
passar por mim todo finito dia.
Não há porque desperdiçar as folhas da calçada
nem porque incomodar o bondoso carvoeiro.
Vou poupar minha caneta, vou guardar minhas palavras,
vou só rabiscar no ar umas sílabas soltas
de despedida que ninguém lerá.
Desta vez, para sempre.
E quando o Sol terminar de secar
o orvalho
só restará a pedra.
Eu.
(scs, 8311)