manhã sem outono

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mantenha os olhos abertos
nas trevas desta manhã
e silencia o grito impensado,
aquieta a cabeça e ouça:

os rumores lá fora dizem que
não há mais esperança ou nuvens,
mentiras renovadas no bairro,
meninas correndo de medo

de um tal homem perverso,
de um bebê abandonado,
de outro dia que ameaça chegar,
o distante badalar da capelinha.

as trevas ainda permanecem
sobre as rugas de teu rosto
tão jovem cansada, tanto tempo,
querem os olhos ver mais (?)

o indefinido suspiro no sótão,
a silhueta no umbral da porta:
os vizinhos? estranhos? viajante?
ou o homem perverso, o tal?

balança a velha cadeira que range
como os pensamentos envilecidos,
como a mandíbula roendo unhas:
tudo inútil, vão, diz o pregador.

conforme-se, então, com o dia sem luz,
de porta entreaberta, sopro de vento
na cortina que esconde aranhas,
na poeira que conta abandono,

sorrindo a alegria só de memória,
tão encardida quanto a saia.
os pés frios, as mãos trêmulas:
não haverá outro dia assim.

(scs, 4912)

O lago

esqueci um livro na beira do lago
onde pescava nuvens
e pássaros azuis

na capa dura de meu livro
havia nuvens carregadas de sonhos
e pássaros com fome

o prefácio do livro que jamais li
terminava por espantar as nuvens
e os pássaros, feridos, fugiam

e nas muitas páginas daquele meu livro
nuvens destilavam tinta escarlate
que desenhava os pássaros azuis

não lembro seu título
as nuvens, eu as deixei soltas
os pássaros me levaram pra longe

o último capítulo do livro pra sempre esquecido
desfiz-me em nuvens de pranto e fuligem
e assustados, alegres, os pássaros azuis apenas voavam

(scs, 29511)

A carta

Não queria terminar mais um dia
sem escrever-te uma carta longa
nas folhas da calçada
e enviá-la pela mão suja do carvoeiro.

Vou contar-te do último mês:
nele a vida pareceu não passar,
surgindo comum sobre a mesa cada manhã,
sem respeito pelos dias de outrora.

E também não houve novena
nem colheita nem partos.
Parece que as vizinhas morreram
e as fofocas cessaram. O mundo esperava.

Lembrei-me de você certa manhã,
pois o dia estava quente e a árvore
fazia uma sombra envergonhada
no chão do meu quarto

e me fez pensar em sorrir
ou em correr para fora sem rumo,
como se fosse encontrar outra vida
ou as respostas no campo dos girassóis.

Então a sombra só me disse
para esperar um dia mais e outro.
E ainda não houve novidades
e chegou mais um final de tarde. Fim.

E foi mais ou menos assim
o mês, contado em dias comuns,
em horas tristes e cantos noturnos
de pássaros ocultos e esperançosos.

Tentei encontrar uma lembrança,
uma notícia importante a contar ou
algum recado da alma que
deveria te dar – uma anotação qualquer,

mas não encontrei nada e
revirei os baús e os canteiros
e nada senão a mesmice e ontem
e uma só sempre igual passagem de tempo

que você conhece tão bem: por isso
foi embora. E levou nas malas
a única alegria que havia por aqui,
mais bela que a nascente do riacho

– ele mesmo parece ter perdido a vontade
de cantar em meio às pedras.
A despedida é sempre uma dor
imensa que o coração tem de sofrer,

e a distância faz da lembrança que se tem
uma imagem que vai se desvanecendo
como o orvalho nas pedras
quando o Sol se acende pela manhã.

Então, pensei que te escrever, amigo,
pudesse manter por mais tempo escondido
o Sol e te manter, orvalho, mais
tempo comigo cada manhã.

Mas não parece funcionar…
Te vejo cada vez mais distante,
figura irreconhecível no cimo do morro
lá muito ao longe. Sei que é uma pessoa,

mas não vejo o rosto, a doçura do sorriso,
o que dizem os olhos, o suor na testa.
Te escrevo como quem sacode
a mulher que desmaia ou o recém-falecido,

querendo trazer de volta, impedindo a morte,
recusando-se a aceitar que a vida se vai,
que leva em sua saia o que se tem de
mais precioso e doce e amável.

Acho que a carta devo mandá-la
pra mim mesmo, pra me lembrar
que um dia você esteve aqui comigo
e viveu comigo minha vida e foi

parte dela. Preciso ler isso pra voltar
a ser quem já não sou e me reencontrar
na certeza de que você não é uma mera
invenção de minha alma sempre tão só.

Sim, você nunca vai saber que escrevi.
É melhor assim. Talvez eu lhe seja
um cadáver voltando do além
para assombrar seus dias agora felizes,

e só quero poder viver aqui, debaixo da
árvore que ainda é tímida
e vendo a vida sem novidades
passar por mim todo finito dia.

Não há porque desperdiçar as folhas da calçada
nem porque incomodar o bondoso carvoeiro.
Vou poupar minha caneta, vou guardar minhas palavras,
vou só rabiscar no ar umas sílabas soltas

de despedida que ninguém lerá.
Desta vez, para sempre.
E quando o Sol terminar de secar
o orvalho
só restará a pedra.
Eu.

(scs, 8311)