Sabe?

Sabe aquele dia em que você acorda com vontade de dormir?
Em que o Sol parece tão quente e desanimador?
Dia em que um banho frio é tão gostoso como chá de boldo sem açúcar?
Em que os passarinhos cantam tão bonito e desafinados e atrasados?
Em que seu mau hálito ofende até o cara do espelho?
Dia em que os chinelos desaparecem?
Dia em que o despertador parece um serial killer?
Em que a remela SuperBonder acorda mais cedo que você?
Em que a vizinha de cima dormiu de salto-agulha e roncou?
Em que o travesseiro lembra colo de mamãe?
Em que um iceberg passou a noite em seu quarto?
Dia em que um suicídio seria terapêutico?
Em que tudo é sem sentido leste-oeste?
Em que o outro lado da cama é tão imenso quanto o Saara?
Dia em que os lençóis donzela-de-ferro são boa companhia?
Em que sua música preferida provoca náuseas e cólica?
Dia em que se pensa se não teria sido melhor… ou…?
Em que um sorriso é um convite pra uma luta de rolar no chão?
Em que os monstros embaixo da cama são de pelúcia?
Pois é.
Meu dia não acordou assim.
Há dias.

(scs, 10913)

naquela tarde, em que encontrei mykaela wondracek

Foi às 2. (Seu Albuquerque Maximiano sempre dizia: Não é 2, é 14 horas, 14! 2 é da manhã. o dia tem 24, dois ciclos de 12 horas. Se não explica, ninguém sabe a qual ciclo você está a se referir. Então, 14, 14 horas!) Eu cheguei 13 minutos antes das 2. As três não haviam chegado ainda. Então, esperei com paciência.

Sempre fico irritado com atraso e com quem me pede paciência. Não tenho, nasci sem, não me peçam. Atrasos me irritam e minha inexistente paciência me diz que devo ir embora, deixar tudo, xingar. Sempre faço isso. Mas como ela estava com as duas, naquele dia não fiz. Esperei.

O inverno estava chuvoso. Começou a chover de novo logo que cheguei. E isso aumentou a irritação, a sensação de estar perdendo tempo, de não ser respeitado pelas três, pois eu cheguei no horário, um pouco antes até como sempre faço, elas podiam ter chegado também se quisessem e me respeitassem. Mas ainda não eram 2. Nem estava muito frio. Pedi um café espresso (um dia me explicaram porque não é com x, mas esqueci. Táxi é com x e exemplo também e cada x tem um som diferente. Como pode? O x é um grande mistério pra mim. Ele me assusta um pouco, pois pode assumir personalidade. Um psicopata. É um cs ou um z. Pode ser a causa desconhecida da morte de milhões – um veneno x exterminou a população – ou aquilo que ninguém consegue explicar, mas parece óbvio pra todo mundo: o x da questão. Qual é o x da questão que não tem x e todo mundo finge que entendeu a explicação? Marque com x sua vítima. No x do mapa está o tesouro. Tudo que é multiplicado por x se torna enorme, incontável, sem medida. O café tinha uma espuma fina na superfície.) A xícara pequena era antiga, de um tempo em que tomar café fora de casa era tão comum como hoje. Mas meu pai nunca deixou. Havia perigos. Sempre há perigos. E chovia.

O relógio de ponteiros havia parado, talvez há dois séculos, às 2 horas, exatamente. Eu percebi isso, pois não moveu seus ponteiros desde que cheguei. Então, fiquei em dúvida: a que horas cheguei? Às 2? Pensei ter entrado aqui 13 minutos antes das 2, e como sei disso? E as três não estavam. Será que fui enganado por essa máquina morta e também estou atrasado? Será que o universo presenciou esse cataclisma cósmico: eu me atrasei? Poderia, por culpa de algum inconseqüente balconista que não deu corda no bonito relógio antigo de ponteiros, ter havido, pela primeira vez desde que o tempo foi criado, que, enganado, atrasado eu estava e estou?

A xícara (começa com x) tremeu em minha mão, sangrando um pouco de café com espuma no pires imaculado. Pousei-a com cuidado, temendo ser tomado de raiva e me vendo jogá-la na parede – não, no relógio, no balconista. As três talvez já tenham passado por aqui, talvez elas se tenham surpreendido e irritado com meu atraso e já tenham partido, já tenham tomado café em xícaras brancas e continuado a vida sem o incômodo de me esperarem por, quem sabe?, quantas horas, já estejam espalhando a conhecidos e desconhecidos que eu, inacreditável mas verdadeiramente e primeira vez, havia – quase dói só pensar nisso – perdido um compromisso por atraso. Uma atitude perversa delas, desumana, mas justificável. Eu as havia ofendido cruelmente, iludido, desperdiçado seu tempo. Tempo, tempo, tempo, o tempo parado no relógio me condena, joga na minha cara meu pecado venial, minha vileza. O café está frio. A espuma sumiu. O sangue no pires parece ter secado. Os ponteiros imóveis perpetuam meu crime.

Tão brilhante quanto o relâmpago lá fora, uma idéia surge diante de mim, quase fazendo com que eu sorria. E se eu perguntar as horas? Tremi. Minha mão conteve-se de derrubar a xícara. Coração disparou, assustado. Olhei ao redor, para me certificar de que ninguém tinha ouvido meu pensamento profano. Quem havia pensado tamanha estupidez dentro de mim? Não podia ter vindo de mim mesmo sugerir-me expor-me (som de s) aos outros, fazê-los pensar que eu pensava ser possível eu estar atrasado. Todos sabem que isso é impossível! A frágil tessitura do cosmos seria irreparavelmente abalada se as pessoas apenas aventassem a possibilidade: ele se atrasou.

O relógio continuava parado e alguém pediu um café com leite e uma coxinha (outro x). Respirei fundo, expulsando (e ele muda de som de novo. É louco!) aquele pensamento suicida, voltando à sobriedade, ao controle de tudo. Preciso pensar com clareza, com calma, sem deixar ninguém perceber o que se passa. Com a voz o mais natural possível, peça mais um café forte, sem açúcar. O balconista ouviu atentamente e sorriu. Estava tudo no lugar uma vez mais. Por enquanto.

A chuva havia parado. Só frio. Tentei ver, por aquela janela baixa com cortinas vermelhas ensebadas, se havia algum grande relógio lá fora, em algum lugar. Mas eu sabia que não havia. Um homem parou na calçada e olhou o relógio no pulso, depois olhou para mim, como se soubesse que eu precisava daquela informação. Mas não me viu e nada disse. Continuou caminhando, levando consigo seu relógio vital. A hora certa foi embora com ele. Comigo ficou a angústia.

As engrenagens precisas se tornaram o mecanismo mais importante da vida. Aquele conjunto minucioso de diâmetros, dentes, corda, eixos, distâncias agora detinha o poder de macular ou resguardar meu caráter, meu nome, minha reputação. E ele estava parado na parede, no pulso do homem que já ia longe, de posse de estranhos hostis. E talvez as três, a essa hora, já estivessem divulgando para as fofoqueiras e as colunistas sociais da cidade: cansamos de esperar, fomos embora, ele, sim, ele! atrasou-se, não apareceu, falhou.

Um homem levantou-se, colocou na cabeça o chapéu que estava sobre a mesa, ajeitou-se, pegou a bengala que encostara à cadeira. Tirou da algibeira um relógio, um grande e belo relógio pendurado ao final de uma corrente de ouro. Fitei meus olhos nele, esperançoso. Aparentemente sem nenhuma razão, o homem não o consultou. Olhou para os lados, talvez tentando recordar se já havia pago o croissant com café sem açúcar que havia comido. Inclinou-se um pouco para o lado, ajeitando a perna que parecia não ter força e apoiando-se na bengala. Trouxe o relógio à altura dos olhos. Parei de respirar. Quase gritei-lhe que dissesse em voz alta que horas eram. Ele cerrou os olhos. Parecia não enxergar direito, só com o esquerdo. E o silêncio. Tudo em silêncio. Todos em silêncio. A expressão no rosto enrugado foi primeiro de preocupação (estaria atrasado também?), mas logo se abriu num sorriso quase infantil (teria descoberto que sobrava tempo?). Encaminhou-se para a porta, relógio ainda na mão, arrastando consigo o segredo eterno do instante marcado pelos ponteiros. Ninguém o impediria?

A porta se abriu. Ele saiu. Ela entrou. Com as duas, com xale xadrez. Viram-me. “Você, hein?!, sempre pontual!” O ponteiro dos minutos do relógio da parede começou a se mover. Ele largou a bengala e, saltitante, seguiu pelo calçadão.

 

(scs, 6212)

anjos e baratas

Era um nome forte, que dizia que ela era uma mulher forte, sem medo, de enfrentar perigos e dificuldades sem tremer nem fugir. Durvalina. Talvez por ser parecido com Durval, nome de seu pai, que é nome de homem. Homem deve ser sempre forte, valente, que até vai atrás do problema só pra vencer o bicho. Sem medo.

Nada mais falso. Celina Durvalina tinha medo de tudo, principalmente de barata e de anjo. Que escândalo cada vez que vê uma barata! Aquela coisa marrom se movendo rápido deixa Celina Durvalina em pânico, louca, insana. Ela sobe na cadeira e, nem sabe porque, arranca a roupa e grita e grita até desmaiar, às vezes. Agora ela já sobe e desce da cadeira antes de desmaiar, pois uma vez caiu e foi parar no hospital. Quase morreu. Ela não entende: ela entende que a barata é pequena, quase nada perto dela, mas o monstro cheio de patas a mantém prisioneira, faz dela o que quer, ordena coisas impensáveis: gritar e arrancar a roupa.

E quando uma barata passou correndo sobre o pé de Durvalina? Por sorte o machado era muito grande e ela, muito desajeitada. Não conseguiu cortar o pé, mas gritou e arrancou a roupa e deixou o pé de molho na água quente com sabão três horas.

Baratas. São sinônimo de pânico, de desespero, de falta de ar. Muito medo de ser estrangulada por aquelas patinhas de serrote. Consegue sentir o cheiro delas e ouve seu barulhinho de correr em silêncio da luz. Por que Deus havia feito aquelas coisas que estalam e soltam gosma quando são pisadas? Nem mesmo morrem de modo decente, discreto, desnojento.

De anjo também. Muito medo. Pavor mesmo. Mas nunca viu nem sabe se existe. E morre de medo.

Celina Durvalina deveria ser forte, como exigia seu nome na certidão de nascimento registrada com data de cinco dias depois. Talvez ela fosse o outro recém-nascido do berçário. Trocas assim acontecem sempre, 32% mais no último ano. Ela não era aquele nome; então, ela não podia ser ela. Quem era, então?

Ela gostava da rima. Achava bonito ser chamada por todo ele. Celina era a parte delicada, fofinha, alguma coisa a ver com céu. Celina, sei lá. Mas, não entendia, todo mundo preferia Durvalina. Se ao menos fosse Lina. Alguns até preferiam Durva ou Durval. Ela tinha de ser forte. Ou pensavam que ela fosse. Não era. Tinha sempre muito medo. De muitas coisas.

Cada trovão um susto. A buzina de um carro fazia olhar quase atropelada para os lados. Todo latido era de um cachorro (lobo) raivoso pronto para estraçalhá-la sem oração. O choro da Viviana era sinal de que ela estava se engasgando, e lá ia ela correndo salvar a filha da comadre. E assim vivia, sempre assustada. Se perguntava por quanto tempo seu coração conseguiria suportar aquilo. “Vou morrer na próxima semana”, pensava toda semana.

Depois de limpar a cozinha, em lugar de tomar seu cafezinho bem doce ouvindo o programa das 14 horas no rádio, resolveu olhar um armário velho no quintal. Ele estava lá há muito tempo. Celina o via, mas nunca se animou de mexer nele, apesar de sua mania de limpeza. Mas agora achou que ele estava enfeiando o quintal, apesar dos vasos com flores em cima dele.

Olhou-o com calma, pensando se poderia oferecer algum perigo. De madeira, verde clarinho, desbotado e sujo, um puxador quebrado, uma chave que não impedia que fosse aberto por qualquer criança. Parecia inofensivo. Inerte.

Abriu as portas num ímpeto. A luz forte da tarde revelou umas roupas antigas, uma boneca quebrada, uma capa de revista mofada, um rato morto e baratas. Muitas. Antes de dar um salto imenso para trás, Celina Durvalina Fortes pensou ter contado um milhão delas ou muito mais.

Caiu de costas, batendo com o ombro no chão. A dor forte a impediu de começar a arrancar a roupa. A garganta se entupiu de desespero e nenhum grito pedindo ajuda saiu. O coração batia audivelmente e as baratas vinham em sua direção, como um exército implacável, abrindo suas alas de forma a cercá-la por todos os lados, com certeza para devorá-la viva. As patas de serrote marchavam com ritmo, declarando que seu fim estava próximo. E iriam roer sua roupa também.

De repente, uma luz forte, de um branco cristalino, azulada, em forma de espada, surgiu ao lado de Celina. Girou em redor dela, baixinho, rente ao chão, atingindo todas as baratas, até as da retaguarda do exército, cortando-as ao meio com um barulho metálico e de fogo. Nenhuma delas escapou. A espada, então, se ergueu sobre Celina, e ela viu uma mão robusta segurando-a e viu como se duas grandes asas, transparentes, de luz azulada também, se abrissem. E tudo sumiu. Celina estava sozinha, caída no meio do quintal, o armário com as portas abertas e nenhuma barata. Nenhum cadáver de barata. Nenhum sinal de que elas estiveram ali.

Durva é seu nome agora. Celina é passado, nome de quem tem medo de tudo. Durva não tem. Mata as baratas com rapidez, sem nojo nem dó. Até sorri ao ouvir o estalo e ver a gosma. Calou todos os lobos, xingou a comadre que não cuida direito da Viviana e canta enquanto ouve trovões. Só tem medo de anjo.

(scs, 21221011)

(fonte da foto)

grafite

Com um lápis amarelo na mão.

Ela sempre os segurava com carinho, como se fossem o dedo de um bebê. Bem apontado, terminava numa ponta muito fininha, que só permitia escrever suavemente, mal tocando no papel, quase deixando-o escrever desenhar rabiscar anotar sozinho. Do outro lado, a borrachinha cor-de-rosa, intocada, que nunca seria usada. Mesmo quando o lápis, impossível de ser utilizado ainda por causa de seu tamanho, fosse colocado amorosamente na caixa ao lado do cadáver-anão de outros lápis, a borracha estaria imaculada, virginal, íntegra desde que nascera.

E eram sempre amarelos os lápis. Uma cor forte, visível de longe, que enfeitavam a mesa como flores ou como penas de pássaro ou como fios de bordado. Eram deixados ali displicentemente dispersos, sempre onze, com uma difícil simetria em seu arranjo, um tecido de lápis e mesa em urdidura complexa, indecifrável para olhos e mãos que não amavam os lápis amarelos como ela. Não eram abandonados ou jogados sobre a mesa, mas deitados sobre ela, bebês amorosamente levados ao berço, mão sob o pescoço para que não acordem, uma ajeitadinha a mais para que estejam confortáveis e sem pesadelos.

Não gostava de amarelo. Não havia nada de amarelo em sua vida. Nem gema de ovo. Nenhum vestido, nenhum enfeite na blusa de festa, nada em seu computador ou na bijuteria chique que usava. Nem os post-its que espalhava pelo escritórios, escritos com sua caligrafia bonita com lápis amarelo, eram amarelos. Só os lápis. Aquele tom em especial a maravilhava, fascinava, acariciava seus olhos, uma paisagem dourada que não cansava de contemplar. Por isso, eram tratados com tanta dignidade, misteriosa volúpia casta, de mal tocar, um afago mínimo para reafirmar o amor e manter a dispersa ordem. Deslumbramento.

Tudo escrevia a lápis, sempre onze sobre a mesa, múltiplos tamanhos. Alertavam que lápis podia ser apagado, fácil falsificar, alguém podia modificar informações importantes. Não ouvia. Usava os lápis, amarelos, e fazia seu serviço a lápis e escrevia longamente a lápis e dava ordens e deixava bilhetes carinhosos a lápis. Apesar das ameaças, sua escrita era indelével, única, imorredoura. Seus lápis não tinham grafite: tinham diamante.

Nunca deu nome aos lápis. Seria demais, um exagero, esquisitice. Eles é que a chamavam pelo nome – Bebel –, inaudivelmente, mas ela os ouvia. E de pronto os atendia, tomando-os para escrever um novo relatório, outro bilhete, mais um poema erótico secreto que só ela entendia. Cada um deles, mesmo quando os onze falavam ao mesmo tempo, tinha uma voz diferente, bem própria, que revelava sua personalidade e seu uso. Não somente eram onze, mas cada um tinha uma função específica. Com aquele, apenas os bilhetes. Com este, nunca os poemas. Aqueloutro, unicamente os relatórios da presidência. Cá este outro, sim, as confissões no diário.

Dedicada como era, Bebel era sempre a primeira a chegar ao escritório. Com flores que dava a si mesma. Mas nenhuma amarela. Jogava-as de qualquer jeito no vaso (só sabia arrumar lápis), organizava os pequenos seres amarelos, suspirava uma canção de amor bem antiga a eles e passava a trabalhar. Sorridente, cantarolante, autoritária, maternal. O dia todo assim.

Então, naquela manhã, Bebel – Isabelina Marcondes Ferreirinha, solteira – morreu. Subitamente. Cabeça caída para trás. Com um lápis amarelo na mão. E outros nove sobre a mesa.

(scs, 231011)

par de meias

E ele nem sabia o que fazia ali, já que detestava manhãs frias fora da cama. E perguntas paradoxais. Como meias de cores diferentes reunidas como par na primeira gaveta no quarto escuro, pois não podia acender a luz e acordar a esposa e os pesadelos. Mesmo assim, tomou café frio, a manteiga havia acabado.

Parou no meio da calçada, cabelo despenteado se ajeitando com o vento e a fumaça dos ônibus, e um cheiro de cigarro vindo não sabia de onde. Era só uma criança ranhenta brincando com uma bituca jogada ao chão, calçada suja. Sorriu, pois de crianças curiosas sempre gostou. As de cabelo fininho e preto. Mas não ao ponto de ter filhos. Não tinha paciência. Nem lugar no apartamento. O condomínio aumentou esse mês e o elevador continua sem luz. Preferia ficar em silêncio por muitos dias. O ranho escorreu até a boca, mas a criança não se preocupava com isso. Etiqueta social é uma bobagem. Essa lição a criança havia aprendido sem saber. E, além de serem de cores diferentes, o tecido das meias era diferente também. E o elástico da bege não prendia direito. Talvez por ser bege.

Meia escorregando. Para arrumá-la, teria de ficar em um pé só encostado na porta da garagem. A grade estava muito suja. E não gostava de ficar em um pé só. Desde pequeno. Acho que tinha cinco. Só de polícia-ladrão. Sempre atirava à queima-roupa com sangue frio sem os dentes da frente. E a mão estava fria. Se tocasse na perna, sentiria arrepios.

Passou por ele uma moça perfumada, alta, ruiva. A saia era muito curta pra uma manhã tão fria. Que ridícula, mal sabe se equilibrar sobre o salto, com perfume barato, nem como desinfetante serve e deve ir pro trabalho assim, ofender o ambiente e servir de chacota para os colegas. O espelho deve ter-se quebrado e nem existe espelho pra perfume.

Puxou a meia rapidamente, limpou a garganta, pois nem precisou tocar na grade, pensando que fosse quarta. Mas era terça! Ou segunda? Quarta, com certeza, não. Então, posso voltar pra casa e trocar as meias. Como havia caminhado pouco, não precisaria jogá-las no tanque, só devolver à gaveta, a primeira, como se nada tivesse acontecido nem visto a moça nem acender a luz. O mercadinho ficava na outra esquina.

Decidiu seguir a moça ruiva, que andava ligeiro apesar do salto alto vermelho e do perfume barato. Atravessou a rua e logo entrou num prédio alto, cinza, que não combinava com a saia nem com o salto. Cumprimentou o porteiro e perguntou se ele sabia o nome da moça ruiva. “Não há moça ruiva alguma neste recinto, senhor!” Mas ela havia acabado de entrar e de cumprimentá-lo! E não havia mesmo ninguém mais ali naquele recinto. Nem o perfume barato. Pediu desculpas, pois confundiu alguém com uma amiga de infância.

Voltou para casa, pois a meia estava escorregando, agora a outra. Marrom. A bituca estava extinta, apagada pelo ranho escorrido e a criança juntava latinhas de refrigerante. Precisou acender a luz, para saber em que lado da cama deitar. Felizmente, a moça ruiva não acordou.

(scs, 221011)