mãos brancas

A cena todo tinha um quê de angústia. Talvez fosse a música baixa, meio desafinada, com notas soltas ocasionais, inóspitas, como sussurros desesperados que escapavam ao silêncio. As cortinas fechadas, desbotadas, abandonadas sobre janelas de vidros quebrados, dobradiças enferrujadas, há muito sem uso. Havia ali uma angústia no ar, um aperto na garganta invisível que andava de um lado para outro.
O que era? Onde estava?
Parecia espalhar-se, como a poeira sobre os móveis, como o cheiro de mofo – uma névoa inexistente que enchia o vazio, expulsando todo ar puro, todo calor do Sol. Era um frio de alma, um desconforto de menino abandonado. Ninguém o apalparia, mas seria esmagado por ele tão logo entrasse na velha sala, um cemitério de veludo bordô, tachas de latão, poltronas de espaldar alto, teias e silêncio.
O Sol, preso lá fora, queria invadi-la, desvirginar sua viuvez, soprar vida sobre o espelho embaçado, que não olhava mais ninguém, de rugas profundas na prata escurecida; queria incendiar o frio de solidão; queria fazer as flores mortas no quadro da parede sorrirem de novo.
Mas as mãos brancas e frias sabiam daquela intenção. E mantinham as desbotadas cortinas mortas bem fechadas, condenando à solitária perene o Sol.

manhã sem outono

Photobucket

mantenha os olhos abertos
nas trevas desta manhã
e silencia o grito impensado,
aquieta a cabeça e ouça:

os rumores lá fora dizem que
não há mais esperança ou nuvens,
mentiras renovadas no bairro,
meninas correndo de medo

de um tal homem perverso,
de um bebê abandonado,
de outro dia que ameaça chegar,
o distante badalar da capelinha.

as trevas ainda permanecem
sobre as rugas de teu rosto
tão jovem cansada, tanto tempo,
querem os olhos ver mais (?)

o indefinido suspiro no sótão,
a silhueta no umbral da porta:
os vizinhos? estranhos? viajante?
ou o homem perverso, o tal?

balança a velha cadeira que range
como os pensamentos envilecidos,
como a mandíbula roendo unhas:
tudo inútil, vão, diz o pregador.

conforme-se, então, com o dia sem luz,
de porta entreaberta, sopro de vento
na cortina que esconde aranhas,
na poeira que conta abandono,

sorrindo a alegria só de memória,
tão encardida quanto a saia.
os pés frios, as mãos trêmulas:
não haverá outro dia assim.

(scs, 4912)

pedido numa noite fria

Posso entrar?
Estou com frio,
já três noites assim,
sem comida também,
sem onde dormir.

Posso entrar?
Não tenho para onde ir,
não tenho de onde vir,
não tenho lugar nesse mundo,
talvez no outro.

Posso entrar?
Não há mais carinho nas pessoas,
me olham sem dó,
com minha roupa suja
não sentem mais nada.
Só nojo.

Posso entrar?
Eu não queria ser assim,
estar aqui,
mas a vida, não sei porque,
me expulsou de casa
e me abandonou.

Posso entrar?
Não quero muito, não quero nada,
só um canto quente pra dormir,
um pouco de água pro rosto,
um prato de comida quente,
e, se houver sobrado,
um gesto de carinho.

Não posso?
Queria entender:
não cheiro mal,
sou gente ainda – eu acho que sim –,
digo “obrigada” e peço “por favor”,
não sou dada a roubar nem mentir.
Por que não posso entrar?

Vejo uma caixa ali, ao lado do fogão a lenha,
vejo uma tina de água sobre a mesa,
vejo comida farta no prato do pão:
nada pedi que V. Sa. não tenha
nem lhe faria falta.

Ah, sim! Agora entendo,
em seu rosto que se desvia,
em seus olhos que abaixam de vergonha:
pedi carinho,
coisa que pra gente como eu
não há.

(scs, 29412)