Homem pela primeira vez

depois que atravessou a rua,
pela primeira vez sozinho,
o menino não era mais menino,
pois quem atravessa a rua sozinho
já é homem feito,
senhor de seu destino,
do mundo
governante de calçadas-nações
capitão de intrépidas naus.

quando o homem feito
se viu do outro lado do oceano de asfalto,
pela primeira vez sozinho,
chorou alto e chamou
pela mãe.

(scs, 29611)

O amor dela por mim

Ela me ama.
Só não sabe como me dizer.
É tímida.
Tem medo de se jogar nos meus braços
aqui mesmo
diante de todos
e suplicar por meus beijos.
Seus olhos, suas mãos, seus cabelos,
tudo grita de seu amor louco
por mim.
– Fernando?
– Si-sim, fessora!
– Venha até a lousa fazer a tabuada do 2.
Ela faz qualquer coisa
pra que eu fique perto dela
e ela de mim.
Tímida.

Não te

não te concebo folha
solta, árvore à toa
não te vejo nuvem
vento, rumo sem fim
não te penso aroma
doce, sopro sem som
não te vi no sonho
antigo, vidros sem luz
não te sinto veludo
cinza, a brasa no pulso
não te percebo mármore
frígido, os veios pulsando
não te contemplo flor
transmuda, seiva e saliva
não te encontro manhã
pérola, aberta ferida

(scs, 291010)

A carta

Não queria terminar mais um dia
sem escrever-te uma carta longa
nas folhas da calçada
e enviá-la pela mão suja do carvoeiro.

Vou contar-te do último mês:
nele a vida pareceu não passar,
surgindo comum sobre a mesa cada manhã,
sem respeito pelos dias de outrora.

E também não houve novena
nem colheita nem partos.
Parece que as vizinhas morreram
e as fofocas cessaram. O mundo esperava.

Lembrei-me de você certa manhã,
pois o dia estava quente e a árvore
fazia uma sombra envergonhada
no chão do meu quarto

e me fez pensar em sorrir
ou em correr para fora sem rumo,
como se fosse encontrar outra vida
ou as respostas no campo dos girassóis.

Então a sombra só me disse
para esperar um dia mais e outro.
E ainda não houve novidades
e chegou mais um final de tarde. Fim.

E foi mais ou menos assim
o mês, contado em dias comuns,
em horas tristes e cantos noturnos
de pássaros ocultos e esperançosos.

Tentei encontrar uma lembrança,
uma notícia importante a contar ou
algum recado da alma que
deveria te dar – uma anotação qualquer,

mas não encontrei nada e
revirei os baús e os canteiros
e nada senão a mesmice e ontem
e uma só sempre igual passagem de tempo

que você conhece tão bem: por isso
foi embora. E levou nas malas
a única alegria que havia por aqui,
mais bela que a nascente do riacho

– ele mesmo parece ter perdido a vontade
de cantar em meio às pedras.
A despedida é sempre uma dor
imensa que o coração tem de sofrer,

e a distância faz da lembrança que se tem
uma imagem que vai se desvanecendo
como o orvalho nas pedras
quando o Sol se acende pela manhã.

Então, pensei que te escrever, amigo,
pudesse manter por mais tempo escondido
o Sol e te manter, orvalho, mais
tempo comigo cada manhã.

Mas não parece funcionar…
Te vejo cada vez mais distante,
figura irreconhecível no cimo do morro
lá muito ao longe. Sei que é uma pessoa,

mas não vejo o rosto, a doçura do sorriso,
o que dizem os olhos, o suor na testa.
Te escrevo como quem sacode
a mulher que desmaia ou o recém-falecido,

querendo trazer de volta, impedindo a morte,
recusando-se a aceitar que a vida se vai,
que leva em sua saia o que se tem de
mais precioso e doce e amável.

Acho que a carta devo mandá-la
pra mim mesmo, pra me lembrar
que um dia você esteve aqui comigo
e viveu comigo minha vida e foi

parte dela. Preciso ler isso pra voltar
a ser quem já não sou e me reencontrar
na certeza de que você não é uma mera
invenção de minha alma sempre tão só.

Sim, você nunca vai saber que escrevi.
É melhor assim. Talvez eu lhe seja
um cadáver voltando do além
para assombrar seus dias agora felizes,

e só quero poder viver aqui, debaixo da
árvore que ainda é tímida
e vendo a vida sem novidades
passar por mim todo finito dia.

Não há porque desperdiçar as folhas da calçada
nem porque incomodar o bondoso carvoeiro.
Vou poupar minha caneta, vou guardar minhas palavras,
vou só rabiscar no ar umas sílabas soltas

de despedida que ninguém lerá.
Desta vez, para sempre.
E quando o Sol terminar de secar
o orvalho
só restará a pedra.
Eu.

(scs, 8311)

Bosque

não havia na dor o adeus
só uma lembrança
um suspiro impensado
e no gesto apagado
não havia mais o sopro
nos cabelos molhados
somente do sonho
a sensação do fim
e a paisagem, o bosque
se desvanece e
fica o toque, a marca
dos dedos delicados
e os passos vão se afastando
sem pressa
levando consigo o aroma
a presença que não está.
sopra um vento suave nas folhas

(scs, 21710)

vertigem

não te sei do olho senão a vertigem
onde te penso noite
a fina e epidérmica fuligem
consome qual açoite

e não mais te vejo senão em saudade
como a bruma que passa
roçam as mãos e ferem-me com maldade
fica o riso sem graça

nem mesmo canto minha dor no lago
não ouço o calmo jardim
falta o torpe laço e o afago
sem perfume a aurora e o jasmim

(sc, sd)

reflexo

não sei onde vi a respeito de mim
em que livro, folha, pedra ou marfim
havia lá desse eu um retrato
sem cor nem forma, nem um acato

a descrição era imprecisa
mas detalhada e mui concisa
os olhos baços que me fitavam
se escondiam de dor e choravam

pareceu-me também ouvir vozes
como flechas de fogo velozes
luzindo à noite e incendiando
os campos, os meus sonhos matando

e de novo vejo a antiga imagem
refletida em pó e serragem
não sou eu! quem estará, quem, ali
me sondando? quem será que me vi?

(scs, 17210)

ah, filhos

a kairós, talita e calebe

filhos, ah, filhos!
há tanto tempo estão comigo
e tão pouco tempo
com vocês passei
e era tão pouco o pouco
que me pediam

podia? sim!
filhos, ah, filhos…

há filhos por todos os lados,
uma multidão deles
pelos cantos
entrando pelas frestas
esgueirando-se pela fechadura
são muitos, centenas
de vozes e opiniões e risos e desenhos e conselhos
dezenas são
eles três

ah, filhos… concebidos com carinho
desnutridos deles
ainda há tempo?

a filhos se deve tempo —
todos eles são filhos únicos
cada um é o mais velho
cada um um universo múltiplo, complexo, único
divertido —
de presença, de silêncio, de olhar compreensivo
de olhar cúmplice
tempo de não deixar o tempo passar
sem marcas
sem coisas inesquecíveis
sem fotografias impressas na alma

ah, filhos!
todos os tantos que são
nos poucos que são:
quanto já andaram
quanto já se tornaram
quanto já não são mais a última vez que os (ou)vi

e já são tão mais eu e ela
e tão mais eles mesmos
com erros novos, inéditos
e dores de família
e angústias na alma pequena
e segredos que mamãe não pode mais saber

e por isso quase os desconheço
como se não houvesse neles minhas entranhas
minha alma, meu hálito

e tudo isso aconteceu
em tão pouco tempo
no tanto tempo que se passou

ah, filhos!
podem me perdoar
o modo ainda por descobrir
de amar vocês?

(scs, 310110)