Só ouvi silêncio


O frio me despertou. Ou tentou. Meus olhos não conseguiam abrir o suficiente; eu só via umas luzes amareladas, indefinidas, uma de cada lado de mim, fixas no ar. E havia uns vultos. Minhas pálpebras mal se abriam, a imagem embaçada, os cílios desfocados, apesar de meu enorme, mas fatigado, esforço por abri-las de todo, e se fechavam de novo, mergulhando-me em escuridão marcada pelo tom róseo provocado pelas luzes lá fora.

Minha mente estava agitada, confusa. Eu não sabia onde estava, não lembrava meu nome… Meus pensamentos pareciam não recordar coisa alguma com precisão: nenhum rosto amigo, nenhum nome pelo qual chamar, nenhum cheiro gravado na memória… Minha mente parecia uma grande caverna escura, na qual ecoavam umas poucas palavras gritadas por alguém, as quais a nenhuma criatura despertavam. Parecia só haver ali a sensação de frio, a de ausência de memórias, a percepção de luzes… e de que eu não estava sozinho.

* * * * *

A tarde começava a cair, trazendo uma brisa fria que derrubava sobre a grama mais flores da grande paineira branca diante da casa. Olhando pela janela ocasionalmente, ela começava a se preocupar. “Ele já devia ter chegado. Tá ficando frio: não levou um casaquinho.” Mas olhava o grande relógio de parede e se acalmava, ou tentava. “Só faz meia hora que ele saiu. Ficou conversando, na certa. Quando começa a falar de história, esquece da vida!” Depois de mais uma olhada pela janela em direção à calçada, passou os olhos pelas belas flores brancas da árvore e voltou às tarefas na cozinha, pensando: “Calma, ele já vai chegar. E o frio mal começou.”

* * * * *

Os olhos agora pareciam me obedecer mais. Consegui abri-los e assim mantê-los por alguns instantes. Eu estava deitado de costas em algum lugar frio. Sobre mim, um impressionante céu estrelado, sem nuvens, com exceção da que mais ou menos ocultava a Lua. Mas havia outras luzes próximas. Virei os olhos para ambos lados (parecia-me que não conseguia mover a cabeça nem o restante do corpo…) e vi dois lampiões com sua luz amarelada. Alguém segurava cada um deles à altura do rosto, mal me permitindo notar alguma característica. A mão que segurava era pequena, de pele muito clara. E os cabelos eram ruivos, abundantes. Havia a meus pés dois outros vultos, mas meus olhos se fecharam mais uma vez, contra a minha vontade, antes que os conseguisse discernir.

* * * * *

O homem, como acontecia sempre que estava sentado em sua cadeira diante da mesa cheia de papéis e de várias canetas sem tampa, tinha à sua frente uma xícara de café com um biscoito de maisena apoiado sobre as bordas. Ele considerava a combinação irresistível. Claro, tinha consciência de que não era nada saudável e que garantia o tamanho exagerado de seu abdome e seu sono constante. “Preciso parar com isso e fazer ginástica”, pensou pela vigésima vez naquela semana que mal começara enquanto tirava farelos de biscoito do vasto bigode grisalho.

Embora o corpo não ajudasse muito, ele tinha a mente muito ágil, muito perspicaz, atenta a detalhes e com impressionante capacidade de memorizar informações e de relacioná-las. Por isso, havia escolhido a profissão de delegado. Gostava de procurar pistas, de levantar hipóteses, de descobrir contradições. E de fazer com que a justiça fosse satisfeita. Orgulhava-se do que fazia.

O estridente telefonou de baquelite preto tocou em sua mesa.

– Delegado… – foi logo interrompido por uma voz desesperada.

– Como vai a senhora?

– Eu lhe peço que se acalme e fale com vagar –, pediu. Ele gostava de usar linguagem mais formal em serviço.

– Sim, sim, por certo que eu o conheço. Já lhe devo ter cumprimentado. É um…

– Há quanto tempo isso ocorreu?

– Veja bem, minha senhora. Compreendo sua angustiosa preocupação, totalmente justificável, mas isso ainda não configura um desaparecimento. É preciso que se passem 48 horas e…

– Sim, sim. Não estou de modo algum desprezando seu instinto maternal – procurou dizer isso de modo muito cortês, para não ferir quem estava do outro lado da linha. – Mas compreenda que isso não é suficiente para que…

Foi interrompido mais uma vez pela aflita voz. Aproveitou esse momento para morder o biscoito depois de molhá-lo no café e para fazer algumas anotações. Não havia nada de especial no que ouvia… mas havia. O policial não sabia explicar; ele simplesmente sabia. Ou desconfiava. Ou antevia.

– Para que a senhora não me julgue indiferente à sua aflição, vou anotar algumas informações, para o caso de que seja configurado o desaparecimento. Eu preciso de detalhes, por gentileza. A senhora mos pode fornecer? Seu nome completo? Nome completo do desaparecido?

* * * * *

De novo o frio me acordou. Dessa vez, porém, foi diferente. Eu parecia mais ciente dele. Eu sabia que eram principalmente minhas costas, em contato com uma superfície fria, que o sentiam. Consegui abrir os olhos de uma vez – quanto tempo eu permanecera desacordado? Ou apenas sonhando? Não sei dizer. A Lua e a nuvem que a cobria pareciam estar na mesma posição. As estrelas continuavam brilhantes. A meu redor não havia ruídos. Apenas os vultos e os lampiões, que não pareciam ter mudado de lugar.

Virei totalmente a cabeça para ambos lados. E agora consegui ver com clareza. De cada lado havia uma mulher, cuja idade eu não conseguia adivinhar, pois os rostos continuavam ocultados pelos lampiões. Além da farta cabeleira ruiva encaracolada e da pele clara da mão, eu via um vestido de uma cor clara, amarelada, talvez pela chama do lampião, que lhes descia até o tornozelo. Abaixo dele, pés descalços sobre uma grama baixinha, salpicada de belas flores brancas de cinco pétalas (por que me importei em contá-las?). As duas mulheres tinham a mesma altura, os mesmos cabelos fartos, a mesma cor de pele, vestidos iguais.

(Bem atrás da mulher que estava à esquerda eu via como que uma grande sombra ou um grande vazio. Não conseguia definir o que era. Assemelhava-se a uma distante parede escura, não muito alta, do que eu também não tinha certeza, mas de formas indefinidas, imprecisas. Talvez fosse alguma rocha ou uma colina que a pouca iluminação não me permitia ver com clareza.)

Voltei a cabeça de um lado para outro, verificando as visíveis semelhanças. Elas pareciam não se importar com isso, pois se mantinham imóveis, segurando o lampião na mesma posição, ainda impedindo-me de lhes ver o rosto. Embora eu soubesse, não sei como, que poderia me erguer (como sabia? Não sei.), não o fiz. Preferi examiná-las de onde estava mesmo.

Olhei em direção a meus pés. A pouca distância de mim, ali estavam um homem e uma mulher vestidos com roupas, ao que parecia, da mesma cor e do mesmo tecido usado pelas duas mulheres. O homem, de cabelos brancos e barba cerrada, mas curta, também branca, olhava-me com um sorriso estranho. Não parecia surpreso com minha presença ali; antes, parecia oferecer-me acolhida. Olhava-me sem se mover. Bem a seu lado, uma senhora da mesma altura, também de cabelos brancos, mal presos sobre a cabeça, olhava-me com o mesmo sorriso. Olhando de um para outro, percebi algo espantoso: eles eram iguais! Não exatamente iguais, pois eram claramente um homem e uma mulher, com traços bem característicos de seu sexo, mas, ao mesmo tempo, eram… iguais. Altura, sorriso, formato do rosto, o modo como inclinavam levemente a cabeça para a direita, largura dos ombros… Iguais!

Essa constatação me assustou, não sei por qual razão. Levantei o tronco com algum esforço, apoiando-me sobre os cotovelos. Olhei uma vez mais para cada um deles, que se mantinham imóveis, e abri a boca para lhes perguntar quem eram e onde eu estava… e nenhum som saiu. Sentei-me no chão e tentei falar mais uma vez, e só silêncio minha boca produziu. Fiquei atônito. Mais pensamentos confusos e vazios enchiam-me a cabeça. Meu nome, pessoas, cheiros, como viera parar ali… nada. Nenhum registro. Nenhuma memória.

Apalpei a grama a meu redor, sem nem pensar em porque, como se estivesse procurando fora de mim o que faltava dentro de mim. Senti apenas sua maciez e sua umidade. Senti que havia daquelas flores brancas para todo lado. Peguei uma instintivamente. Olhei para aquelas pessoas. O casal se entreolhou, e o sorriso em seu rosto se alargou por um momento. Logo voltaram a olhar com o sorriso simpático e incômodo de antes. As mulheres a meu lado não se moveram.

Tentei erguer-me. Senti-me fraco. Então, primeiramente, ajoelhei-me, apoiando as mãos diante de mim. A mente continuava vazia do que eu esperava ali encontrar. Respirei fundo várias vezes. Uma discreta brisa da noite fez-me sentir que minhas costas estavam úmidas. Aquilo pareceu me revigorar. Apoiei um dos pés no chão, apoiei as duas mãos sobre ele, ainda segurando a flor branca, como se pudesse me impulsionar para cima, e levantei-me. A nuvem permanecia cobrindo a Lua e se espalhando um pouco sobre as estrelas. O silêncio permanecia. As pessoas a meu redor continuavam imóveis: dois rostos sorrindo, dois rostos ocultos. Constatei que tinham todas a mesma altura… e que eram todas da minha altura.

Uma vez mais, abri a boca para dizer algo… e nenhum som se ouviu. Curiosamente, não me desesperei. Parecia que era o que devia acontecer e que eu já sabia disso de alguma forma. Olhei para as mãos sujas de orvalho e grama, com a flor branca entre os dedos, esperando que elas me ajudassem a dizer algo àqueles estranhos a meu redor. Toquei com elas minha boca, depois deixei-as um pouco afastadas do rosto e balancei um pouco a cabeça, tentando dar a entender que não conseguia falar.

As duas mulheres, ao mesmo tempo, num movimento sincronizado, moveram os lampiões para a esquerda, e lhes pude ver o rosto. Eram iguais! Gêmeas idênticas! Olhavam-me com seriedade, testa enrugada, sobrancelhas próximas, sem se importarem com meu evidente espanto que fazia com que virasse a cabeça sem cessar, buscando semelhanças, ou diferenças, entre elas. Ao fixar os olhos no casal, percebi traços comum às quatro pessoas que me miravam. A mesma testa, a mesma altura, o mesmo formato triangular de rosto, a mesma espessura das sobrancelhas. Eu diria que eram pais e duas filhas gêmeas… se não fosse a aparente (eu já começava a duvidar da exatidão de minhas conclusões) ou evidente diferença de idade. O casal parecia ter mais de 70 anos, as moças pareciam adolescentes, talvez 15, 17 anos. Não mais que isso. Não era impossível serem filhas dos idosos, mas era uma hipótese tão estranha (e o que não era estranho ali?)!

Atônito com tudo, sem a menor idéia sobre nada que estava ocorrendo, tentei dar um passo em direção ao casal. Senti a perna direita fraquejar, e, com uma agilidade surpreendente, logo o casal estava a meu lado: o marido (eu supunha que era marido) pegou-me no braço direito, com a mão direita entrelaçando meus dedos e com a mão esquerda sustentando meu cotovelo, e a idosa fez o mesmo do lado esquerdo, com a mão esquerda na minha mão e a direita em meu cotovelo. Senti-me compelido a agradecer-lhes e, olhando para cada um deles, abri a boca para lhes dizer “obrigado”, e eles só ouviram meu silêncio.

De modo muito suave, quase como se eu mesmo decidisse o que faria, eles me fizeram caminhar. Eu apenas cedia à orientação deles, que não pareciam ter pressa. Apenas empurravam levemente meus braços para a frente, fazendo-me andar, de modo meio trôpego, por uma picada quase imperceptível na grama, aqui e ali marcada pelas flores brancas. Ela parecia ter sido trilhada pela primeira vez há poucos instantes, por aqueles mesmos pés descalços que agora me faziam andar por ela. Vi que as duas moças, ao mesmo tempo, elevaram os lampiões um pouco acima do rosto, como que para iluminar o caminho à frente, e seguiam atrás de nós. O homem e a mulher por vezes trocavam um olhar, mas nada mudava em seu semblante. Ali estava congelado o mesmo sorriso desconfortável de antes. E caminhávamos.

Alguns metros depois do lugar onde eu acordara (não sei calcular a distância), viramos repentinamente à esquerda daquela muralha sombria, que permaneceu indefinida para mim. Era como um grande lençol preto que ocultava o que eu agora via. Logo à nossa frente havia uma mata fechada. Minha reação espontânea foi de parar, mas aquelas mãos delicadas, pressionando meus braços, me convenceram a continuar. Não sei dizer se elas me inspiraram confiança ou medo de desobedecer, mas não resisti. Parecia-me que não tinha muito poder sobre minhas pernas, como se aquele fosse o único caminho pela qual obviamente deveríamos seguir.

Conforme nos aproximávamos da mata, aquela que parecia uma parede vegetal impenetrável revelava uma estradinha, como a que havia na grama: recém-estabelecida, trilhada uma única vez por aquela… família (como chamá-la?). Ao lado de uma árvore havia um pequeno trecho, que logo se escondia por trás de outra e se descortinava mais à frente. Contornamos árvores, tive a impressão de estarmos caminhando em círculos outras vezes (afinal, todas as árvores eram iguais para mim), passamos por arbustos, e mais desvios pela frente e por trás de troncos de toda espessura. A luz da Lua, mal ocultada pela nuvem, nada ajudava, pois não conseguia invadir a copa das árvores. A luz dos lampiões, que também quase nada iluminavam no breu da noite, parecia ser o que guiava a família (?). Mas então percebi que, na verdade, conheciam aquele caminho muito claramente, que poderiam percorrê-lo, talvez, até de olhos fechados: conseguiam desviar-se de troncos, de galhos baixos, de pedras que eram invisíveis na escuridão.

Olhei para o casal que me amparava/conduzia. Olhavam para a noite diante de si, sabendo por onde andar sem necessitarem olhar para o chão. E estavam descalços. Como sabiam que não haveria pedras pontiagudas ou espinhos ou animais peçonhentos ou lugares escorregadios?

* * * * *

– Eu sei que alguma coisa aconteceu com ele!

– Não pense assim. Pensamento positivo. Tá tudo bem. Logo ele cruza o jardim e entra por essa porta pedindo desculpas pelo atraso?

– Atraso? Você chama isso de atraso? Faz cinco horas que ele já devia ter chegado! Cinco horas! Atraso de uma hora eu entendo; ele já fez isso antes. Mas cinco?! Ele?! Nunca! Ele sabe como eu fico preocupada. Ele se importa comigo… Ele sabe quanto tempo tentamos… Foi um milagre!

O marido a aproximou do peito, sentindo as lágrimas dela molharem sua camisa.

– Tá certo, tá certo… Mas vai ficar tudo bem. Eu tenho certeza. A gente já ligou para os colegas dele, já andamos por aí. Já falamos com o delegado. Está todo mundo de olho. Em cidade pequena como a nossa, é fácil achar alguém, ter alguma informação…

– Você me promete que ele tá bem?

– Claro, minha querida. Pode confiar em mim. Onde ele estiver, ele tá em boa companhia.

– Cinco horas! Onde tá meu filho?

* * * * *

Avançávamos ainda entre as árvores. Tentei calcular quanto tempo já se havia passado desde que acordei (e como eu havia ido parar lá?) e desde que entramos na floresta, mas não consegui. Não havia nada que me sugerisse o tempo. Por um lado, tudo se assemelhava a uma lembrança distante ou a um sonho confuso, em que os fatos se sobrepõem sem interrupção e muitas horas se passam em segundos; por outro, o cansaço que eu sentia, a fraqueza no corpo, a caminhada que não terminava, tudo me fazia pensar que essas coisas estavam acontecendo há muitas horas. E eu não conseguia pensar em nada que me ajudasse a medir de alguma maneira o que estava ocorrendo. Tentei contar os passos que dava. Logo me perdia e repetia números ou pensava em outra coisa por um instante e os números sumiam de minha mente. Então, eu só prosseguia.

Depois de circularmos um grupo de árvores de tronco fino e sem galhos até onde eu via, chegamos ao final da mata. Estávamos mais uma vez num gramado… exatamente igual àquele em que começamos a caminhada. Reconheci as mesmas pequenas elevações, umas pedras ocasionais, flores brancas espalhadas pela grama, até mesmo a sombria muralha à esquerda. Tudo era assustadoramente igual! E continuamos no mesmo passo, eu sendo amparado/dirigido pelo casal e as duas moças atrás de nós. Em silêncio.

Caminhamos muitos metros e, mais uma vez, viramos repentinamente à esquerda, depois da inexplicável parede de sombra. Diante de nós, à mesma distância em que antes havia a mata fechada, agora havia uma casa. Não muito grande, de dois andares, estava com a porta da frente aberta, pela qual via-se o crepitar do fogo em, talvez, uma lareira. Atrás de duas das janelas do andar superior via-se o tom avermelhado de alguma vela… ou de um lampião. As outras duas janelas estavam abertas, mas sem iluminação através delas, com cortinas brancas balançado para o lado de fora, embora eu não percebesse nenhum vento. Ao lado da casa, uma linda árvore de flores brancas, iguais às que havia na grama, iguais à que eu tinha na mão.

O casal parou e, por conseguinte, parei. Eles se entreolharam mais uma vez e olharam para mim ao mesmo tempo. Vi, um de cada vez, que a boca deles se mexia ao mesmo tempo em que os olhos e a inclinação da cabeça pareciam se referir à casa. Estariam falando? Eu não ouvia nada! Nada! Será que eu havia ficado surdo? Tentei dizer-lhes para que falassem mais alto ou que eu não os ouvia, mas minha mudez se manifestou mais uma vez. Voltei a sentir pânico, tentei largar-me deles para tentar fazê-los entender que eu não conseguia ouvi-los, mas as fortes mãos me impediram, ao mesmo tempo em que a boca de cada um não parava de se mover.

Então, eu percebi que não tinha lembrança de nenhuma voz. De nenhuma! Nem da minha. E como, então, eu sabia que tinha voz? E que eu deveria ouvir vozes? Será que o silêncio completo que tenho ouvido desde que acordei é por que sou surdo, sempre fui surdo? Durante a caminhada na mata, eu também não ouvi barulho de galhos sendo quebrados, de animais noturnos, do vestido das moças arrastando-se sobre as folhas caídas, dos nossos passos… Só ouvi um silêncio completo, só a ausência completa de vozes e ruídos.

Como eu quis acordar! Isso só podia ser um terrível, horroroso pesadelo! Sim, com certeza era! Mas quem era eu que sonhava? Onde eu sonhava? Ao acordar, onde eu estaria? E quem eu seria?

As mãos firmes me fizeram continuar caminhando em direção à casa. O mesmo silêncio nos circundava. As bocas continuavam se movendo. Os olhares continuavam sendo trocados. Os lampiões continuavam atrás de nós. O fogo lá à frente continuava a iluminar e a fazer sombras. As flores brancas caíam de quando em quando da árvore. E meus pés obedeciam sem que eu quisesse. E na mente nenhuma memória de nomes, sons, vozes, cheiros. Nada. Só do frio que me acordou, só da Lua tímida, só do caminho no meio da grama, só da caminhada.

Pouco antes da soleira da porta o casal parou. As moças saíram, exatamente ao mesmo tempo, de trás de nós, cada uma por um lado, e colocaram-se diante da porta, voltadas para nós. Permaneceram ali por alguns instantes, com os lampiões uma vez mais na altura do rosto. Então, simultaneamente, elas os baixaram, segurando-os com as duas mãos, com os braços estendidos em direção ao solo, como se tivessem cansado. Assim, o rosto delas assumiu um aspecto assustador, com aquela parca iluminação vindo de baixo, agravado pelo silêncio que imperava. O casal olhava fixamente para elas, sem afrouxar a pressão em meus braços. Minha tímida tentativa de soltar-me foi impedida por mãos ainda mais fortes. Os pulsos agora doíam, como se aqueles dedos de pele clara estivessem procurando encontrar meus ossos. As mãos que seguravam meus cotovelos garantiam que eu permaneceria ali mesmo, sem poder reagir.

As moças ergueram os lampiões, uma com a mão direita, outra com a esquerda, trazendo-os para o lado do rosto. O estranho efeito de meia face iluminada dava a impressão de que elas se uniam em um único rosto dividido por uma sombra. Elas abriram a boca e moveram os lábios. E eu ouvi! Eu ouvi! E soube que era meu nome. E vozes e cheiros e lembranças voltaram à minha mente. E meu nome! Sim, elas disseram…

* * * * *

– Você tem certeza?

– Absoluta. O guarda-noturno estava fazendo a ronda por aqui, do mesmo jeitinho metódico que faz todas as noites. A praça estava vazia, como costuma estar às duas da manhã no meio da semana. Ao passar por aquela calçada – o policial apontou para um ponto à sua frente –, o guarda viu uma coisa estranha… – e apontou para o banco diante do qual estavam, sem conseguir continuar.

O corpulento delegado olhou com certa pena para o policial. Era muito jovem para se deparar com coisas assim. Depois olhou para o banco por alguns segundos, tentando ligar as informações de que dispunha e o que via. Não conseguiu. Nada fazia sentido. Ele também nunca havia se deparado com uma coisa assim.

– O guarda afirma que não viu ninguém circulando pela praça? – perguntou. – A praça é bem iluminada. Apesar da nuvem escondendo a Lua, há um poste de iluminação bem aqui em cima. É impossível alguém chegar com…

O jovem cortou-o, meio nervoso.

– Sim, ele garante que não viu ninguém. Ele costuma dar duas voltas na praça antes de ir… de avançar para a outra quadra. E não viu ninguém nesse meio tempo. Eu o conheço há alguns anos, desde que se mudou para cá. É primo distante de meu pai. Um sujeito muito sério, que leva muito a sério o trabalho.

O delegado respirou fundo.

– E você tem certeza de que é…? – perguntou ao jovem colega, que havia virado de costas para o banco.

– Sim, senhor. A identidade dele estava no bolso da camisa.

– Lugar estranho pra isso…

– O nome é o mesmo dado pela senhora que ligou desesperada.

– Mas quando ela ligou, fazia só cinco horas que o filho havia desaparecido. Até a hora em que o guarda-noturno ligou para a delegacia, mais duas horas. E – estendendo a mão para o banco da praça – este corpo tem a aparência de que está morto há uns… dez anos! E o que é essa fisionomia congelada de surpresa? E como pode estar com as mãos nesta posição, com grama fresca nela?! E segurando uma flor branca que não está murcha?! E como veio parar aqui, sem ninguém ver?! Isso não faz sentido! – gritou, desalentado.

Nada fazia sentido. Nem o silêncio que se ouvia ao redor dos dois policiais. Ilógico silêncio.

(scs, 6223)

Linda


– Desvivo precário.

– Ainda a dor? – perguntei do jeito mais suavemente possível, depois de pensar por uns instantes. O que dizer? Queria de ajudá-lo, mas tinha medo de não compreendê-lo e sua dor, ainda.

Ele ergueu a cabeça, os espessos cabelos brancos ondulados foram ajeitados com a mão. Olhou pra mim. Na verdade, não pra mim, em meus olhos, mas pra um lugar além atrás de mim. Não para a mata pertinha da casa, florida, de aromas frescos de primavera que estava se findando, com tantos barulhos miúdos, que pareciam um silêncio. Pralém. Pruma lembrança, uma busca, uma saudade.

Respirou fundo. Parecia dizer que minha pergunta era tola, que não precisava de responder, pois eu já sabia a resposta. Não. Respirou fundo pra ter coragem viril de enfrentar a pergunta. Era homem de tantos anos e coragens, mas não fora preparado praquilo. Pra pergunta.

– A vida – começou na voz baixa e rouca com que sempre falava de si mesmo – é uma semeação. Começa pequena, na semente brotando, sai da terra, se aproveita do Sol e da água. Cresce. Vai se crescendo. Viçosa planta. Fruteja. Encanta. Tem cor e cheiro. Alegra. Ao depois – uma pausa longa, os olhos baixam para olhar as mãos grossas e trêmulas – vem a ceifa. E se foi-se a planta. Existiu, mas não mais. Assim é. Com cada e todos.

Respeitei seu silêncio. Esperei.

– Foi num janeiro. A festa era de batizado do neto do Dr. Deocrécio. Festa bonita. Eu tava lá, recenzinho entrado nos vinte ano, asseado, de calça de fatiota, o calçado desacostumado do pé apertava. Mas era beleza e orgulho, no meio dos pessoal da cidade, como se fosse como eles. Tinha vindo os grande cá pro interior de São Gervásio dos Ausente. Eu nem não quis beber, pois tinha medo de me escancarar em fiasquêra. Ficava só espiando, as gente alegre, familiar que se reencontravam, abraços e apertos de mão, parecendo mesmo que tudo era coisa feliz, de bom se rever. Eu era só eu, sozinho, sem ser da família de ninguém. Tava só existindo aquele dia no meio da festa, nem bem convidado era. Apenas ali. Não queria perturbar ninguém, não queria atrapalhar o corre-corre, o festejamento de quem era de direito. Assim, mesquivava de todos, comia só umas coisa pequena, bebia um copo dágua. No meu canto. E era, do meu modo, a meu assentado, feliz. Eu achava que já era tanto muito aquilo que a vida me deixava eu viver. Já era quase a minha ceifa. Quase o meu destino finalizado. Uma festa pra ver os otro alegre. Me agradei do pensar assim. E quase já tava me indo, voltando pro meu nadinha, mais inda lá pro interior…

– Então foi que, num valseado, eu vi a moça. Nunca meus olho se deparou com criatura de meu Deus mais linda. Uma perfeição de gente! Uma imaginação ali viva. O vestido era duma branquice que só, um cabelo lisinho, comprido nos ombro, que a brisa mexia. Parecia envergonhada da gentarada. Ficava meio apartada do povaréu, um prato de salgadinho na mão, num recato imenso. O olho preto era lindo e cheio de esperteza e eram tímido também. Comecei a caminhar pro lado dela, sem nem decidir. Fui só indo, achando um chamado praquilo, um vem-aqui no ar, sem palavra.

– Quando viu eu se chegando, pensei que ela fosse correr. Mas me olhou eu e só deu foi um sorriso imenso, de branqueza dos dente branco, da alma branca que ainda mais. Pareceu até que já sabia que eu existia. Sentemo num banquinho meio pra lá, e a conversa corria feito um corguim, cheia de risada, de respeito, de delicadeza. E a gente nem tinha se perguntado o nome. Pra eu, ela era só linda. O tempo não sabia se corria feito passarinho fugido ou se se arrastava com preguiça de fim de tarde. Senti que a gente tinha sempre se conhecido, mas também era tudo uma novidade, de duas pessoa que se descobria…

Ele parou. O barulho na mata também. Um silêncio completo nos cercava. Nada podia competir com a história da dor dele. Esfregou a costa das mão uma na outra; mania quando alguma coisa lhe apertava o peito, uma lembrança ruim, um dissabor, um vazio. Apertou os olho, pra relembrar a cena já tão lá pratrás.

– A prosa se discorreu até muito depois da tarde, dos pessoal indo desfazer os festejo, de levar a criançada pra dentro, pro banho de bacia, as empregada limpando tudo e fofocando. Ninguém nem viu nós, linda e eu. A gente só existia um pro outro, nem pra ninguém mais. A Lua tava meio espiando o mundo de dentro dumas pouca nuvem que tinha. E o cabelo preto dela brilhava inda um tanto. E o sorriso era mais branco que a Lua. Mas parecia que nem se havia precisão de muita luz por causa que o olho e o sorriso e a pele clarinha e a alma dela era tudo tão linda que alumiava.

– Nem rimos muito de dizer bobícia. O riso que vinha era de descobrir que eu e ela nós dois pensava igual em muitas arte da vida. Uma grandeza! Do apreço pelas flor amarela, do respeito pelos mais velho, do sonho de morar numa casinha na beirinha dum riacho, da solidão que certas noite traz, em tudo nóis era igual.

– Era como se a vida tivesse feito nós dois em duas metade, apartada, mas sendo uma coisa só, com um tanto do todo em cada uma. Você é muito sem experiência de vida e nem não vai entendê isso. É coisa do misterioso da existência, uma filosofia. E nós não nos dissemo isso. A gente só sabia, só descortinava, só se reencontrava pela primeira vez no pra sempre. Então, ria um risinho faceiro, desmedido, entoado de feliz. Linda e eu.

– Num momento sem mais, ficamo os dois em silêncio, palavras engolida, nada de dizer. Parecia nem respirar, nem carecer. Vendo nos olhos, bem lá no dentro, se espalhando na alma um do outro, refulgente, amoroso. Eu olhava os olhos pretos mais negros que a sem-luz, mas que eram sossegado, de paz, carinhoso, um afago. E eles me atraía, me chamava eu, minha boca, tudo eu, pra mais perto, mais perto… Toquei o rosto dela de levinho com a ponta do dedo, pele macia, fria pela noite. Ela sorriu bem pequeno, mas tão linda. A boca se abriu um poquinho, me chamando sem som. E nóis se beijamo.

Meu tio silenciou. Havia uma lágrima escapando pelo olho. Um sorriso de lembrança feliz, mesmo com uma tristeza adicionada. Era um alembramento bom. O brilho nos olho dele dizia isso. Não era de apressá-lo. Ele voltaria no momento certo.

– E nóis se beijamo. Com muita doçura. Ela tinha um frescor de hortelã, um gostinho de… Foi tão delicado, tão cheio de ternura, de paz. Tão linda! Beijo longo que nem sei, mas foi. Nem pensava em nada. Deixei de estar no mundo. Nem vivia mais, só sentia. Respirava ela. Um sumição. Quase ouvia suas palavra falando dentro da minha boca, me contando seu amor, seu sonho comigo, que me queria pra ela pra sempre. O beijo arrancava nóis dali, fazia viajar num não-sei-onde, de tanta felicidade, de encher o coração de contentamento, o corpo num descanso aflito, aconchego.

– Foi com um rainho de Sol que o beijo se terminou. Abrimo os olho, e tava os dois ainda ali, rosto feliz como o quê, brilhoso, um amor que se via, inseparável. Eu peguei na mão dela, sem deixar de olhar fundo na negridão do olho lindo. A mão pequeninha, macia como…, quentinha agora, meio tremendo (era o frio ou o amor), com um anel de pedra miúda. Falei: “Você me queria eu como seu pra sempre?” “Quero, sim”, ela falou de chofre, sem nem pensar, sem piscar, com um sorriso ainda mais grande.

– Então, o padre… Sempre nem lembro bem se era o Enísio ou se era o Jalmiro. Era uns dois muito simpático, velhinho de cabelo branco, mas cheio de vigor, de seriedade com os sagrado e divino… Acho mesmo mais que era o Enísio, que tinha dormido na casa do Dr. Deocrécio, já tinha se levantado, tava por ali. Umas senhora da fazenda, damas de belo porte e carolice. Corremo pra ele. Falamos do nosso amor, do beijo, das estrela que choveram em nós na madrugada, das alma que era tão uma só… O padre entendeu. E sorriu um seu sim de abençoar e sacramentar. Uma mocinha cortou umas florinhas como aquelasli – fez um gesto difícil, apontando com o dedo enrugado e triste pras flô amarela, branca e lilás num canteiro em frente da casa – e fez uma grinalda muito arranjada e mimosa. A renda grande que usaram em cima do cobertor do nenê batizado se tornou-se o véu, comprido de pureza. Me arranjaram um paletó pra mim, direitinho que ficou no meu tamanho. Uma gravata de seda. Uma água de colônia boa. E ela, linda, como mais ainda tava ficando, enoivada pelas cumadre. Uma alegria no ar.

– Dr. Deocrécio apareceu e se interô-se do ocorrendo e foi logo chamar os músico: tinha duas rabeca e dois violão, dedilhando bonito, aquela música: lá-lá-lá-láááá… – eu não identifiquei a melodia, na sua voz tremendo e rouca, meio engasgada. Os olho brilhava, como se ele tivesse vendo ali mesmo a cena do antes.

– Ele aprumou todo o rebuliço, ordenou a criadagem e num tantim a festa tava aparelhada. O bolo com um casal em cima, uns doce, muita flor e contentice. O padre. Os padrinho foi uns três casal dali, primos e parente, eu acho. Era hora dos voto, das pergunta mais séria dessa vida. O padre Enísio fez um pigarro de gente importante que vai discursar e perguntou: “Você quer receber a Linda como sua esposa, como se fosse um presente do céu, pra cuidar dela com mimo e respeito enquanto seu coração viver?”

– Eu olhei lá dentro do olho dela e disse: “Sim, é o que eu mais quero pra sempre”. Ele falou: “Linda, você que se encantou com ele com a graça da sua alma e debaixo das estrela mais linda, você quer mais ele que qualquer outro no mundo enquanto respirar nessa vida?” Ela baixou os olho um momentinho e, depois, me olhou com a maior beleza que já vi, com um sorriso tão do grande que quase ofuscou eu, e me disse, uma voz tão forte mesmo sendo meiga: “Eu quero ser só sua pra sempre e o mais.” “Eu vos declaros vocês dois marido e mulher!”

– Ah! A felicidade! A música, os aplauso, a alegria de todos, inté as criança se abraçava e vinha nos dizer parabéns e tudo de bom. O Sol parecia brincalhão, com uns raio bem em cima da Linda, alumiando as flor da paineira e da grinalda, a beleza, tudo ela, que nunca existiu pessoa mais formosa e perfeita. Eu ria de não acreditar que pudesse um dia ter conhecido ela e casado e chegado a ser o homem mais feliz do havido. E um tanto de presente que ia se avolumando numa mesa: umas roupa bonita de cama, um chapéu daqueles, uns vestido mais estupendo que os outro, uma panela de barro, um tamanco com enfeite, um balaio de verdura, provisão pra mais de mês… Nem sei tudo de quanto que ganhamos. Descobri o tanto que os pessoal nos gostava naquela manhã de nunca mais. Num janeiro. Bem no início.

– E veio a dancêra e a comilança. Se alegremo todos, com decência, sem algazarra, das senhora e crianças não ser incomodada nem carecer de conversinha de risinho dos desmodo ou sem pudismo. Foi tudo tão intacto como a beleza de Linda, do nosso amor, do sonho que não se despertava, da música carinhosa…

Um suspiro saudoso, um olhar para mais além, o olho se avermelhando. A dor.

– Numolhada um pro outro, nós se combinamo de sumir da festa e ir pra nossa casinha, na berinha do riacho, se amar, viver de só nós dois, se alegrar de agora existir numa vida só única. Peguemo umas pôca coisa que ia se precisar e escapulimo. Até que sem pressa, da alegria que era tudo que se fazia junto, de não ter mais lonjura e poder ficar sempre com o outro. O caminho até nossa casa, branquinha, era dum capim baixim, macio, quase um tapete da casa grande. A gente ia deixando as pegada no capim, a estrada pro lugar de ser feliz.

– A casa. O fogo no fogão aquentando tudo. As cortina branca. As fruta cheirosa em cima da mesa. Flor pra todo canto. E nosso quartinho… Eu peguei Linda nos braço, beijei sua boca de hortelã… Nossa cama.

Novo silêncio. O olho agora procura alguma coisa mais longe ainda, no horizonte, num onde que não existe ou que foi um dia. Ele parece que não se alembra mais que eu tô aqui. Tá falando com ele mesmo, uma lembrança em voz alta. Eu aguardo. Consigo ver que é a dor. Um longo tempo.

– Nunca ninguém não vai conseguir dizer com as palavra o que foi aquele dia de lua de mel. De contentamento tanto o peito parecia que nem ia vencer. O olho piscava pra acordar, mas não era sonho, mesmo que era, o sentido, a presença, o desafogo de alegria. Uma intensidão de amor, espalhado pela casa, na pele, assoprando a alma, o deslumbre de um sentir o outro e o amor. Fica uma marca mais perene que de fogo. Nunca se apaga. Nunca. Nunca…

– Então… aconteceu… o impensado. O desespero. Não podia… Logo, naquele quando? – A voz queria se manter firme enquanto as lágrimas abundantes desciam. O mesmo olhar, agora com toda dor. – Eu acordei de manhã, estonteado de feliz, arrebatado… mas Linda não tava na cama. Achei que tivesse ido preparar o café. Não tava na cozinha. Nem no quintal. Nem lá fora. Gritei. Chamei. Corri. Procurei. Perguntei. Vasculhei as mata, o riacho, andei quilômetros afora, entrei em gruta, em tapera abandonada, em casa dos outro… Nada. Linda… sumiu. Como se nunca tivesse sido.

Era essa a dor. Agora, com a cabeça baixa, com as mão por cima dela, não querendo ouvir o que ele mesmo disse, chorava. Chorava o choro de todos esses ano que Linda se foi.

Esse é meu tio, Deocrécio. Eu chamo pra ele de tio Decinho. Amo muito demais ele, que me cuidou sozinho depois que meu pai, seu Jalmiro Astrúcio, faleceu, picado de cobra, perto do lago de Ausência. Ele que sugeriu a meu pai que meu nome fosse Enísio. Queria que eu fosse sacerdote, como ele nunca pôde de ser. Agora que tá velho e sem sustento, só eu venho visitar ele e ouvir sempre a história de dor da Linda, a mulher linda que nunca existiu.

(Publicada originalmente em 17513; atualizada e republicada em 7421; revista e atualizada em 11723)

A estranha melodia


– Essa mesma! – gritou Gaspar, quase engasgando-se ao tentar rir ao mesmo tempo.
– Pois é – continuou Lúcio, colocando o violão a seu lado, na grama. – A banda tava tocando essa música horrível, e o Gaspar nem viu que tinha esbarrado naquele cara enorme atrás dele, do tamanho de um jogador de futebol americano com uniforme! Eu senti que a coisa ia resultar em morte do magrela aí –, apontando para o franzino amigo –; então, puxei o Gaspar, falei bem alto que a vovó Nardina (nem sei de onde tirei esse nome…) tava preocupada, procurando por ele, que queria se despedir dele antes de morrer…
– Ah! Disso eu lembro! Eu achei que eu tava bêbado, pois não entendi patavina do que aquele estranho tava falando ao mesmo tempo em que ia me puxando pelo braço, com pressa… Até que, longe do assassino do baile, ele me explicou tudo.
– E foi assim que a gente se conheceu! – concluiu Lúcio, abrindo os braços em direção aos amigos.
Surdo, Gaspar e Teco aplaudiram e riram, imaginando a cena.
– Cara, isso faz uns cinco anos, né? Meus pais tinham se mudado há pouco pra Ausência…
– Sabe –, interrompeu Surdo, meio sonolento –, meu pai fico muito bravo quando eu chamo São Gervásio dos Ausentes de Ausência ou chamo seus nobres moradores de ausentes. Ele sempre fala, com aquela voz de locutor de rádio antigo dele: “O gentílico correto é ausentianos; ou, como preferem os mais tradicionais ainda, são-gervasense-ausentianos”.
– Minha avó é a mesma coisa – acrescentou Teco. – Parece uma ofensa pessoal falar de Ausência ou de ausentes. É como se mexesse com alguma coisa… Sei lá… com a alma dela, com a alma do pessoal dessa cidade.
– É uma cidade muito estranha mesmo – concluiu Lúcio, olhando para trás.

Os quatro amigos estavam no Morro da Gruta, acampando. Lá abaixo, estava São Gervásio dos Ausentes, cidadezinha com uns dez mil habitantes, espalhada por uma grande área em torno do “centro”: uma única avenida cortava a cidade, no meio da qual havia a Paróquia com o mesmo nome da cidade, numa praça de árvores mal cuidadas. Nessa avenida estava o decrépito cinema, a única agência bancária, o supermercado, a agência do correio, a funerária. Quase ao final, a rodoviária, que não passava de um guichê no fundo de um bar, uma placa na calçada e um ônibus velho ali parado. No final da avenida, o Centro de Tradições Gaúchas, grande orgulho da cidade. Nas ruas laterais, casas, pequenos comércios, empresinhas de fundo de quintal. Espalhando-se para o lado sul da cidade, havia sua região rural, além de áreas verdes no meio das quais, diziam, havia casa de gente muito rica, que vinha se refugiar anonimamente ali para fugir do barulho e do assédio. Diante do lago, que parecia mais um pântano, estava o antigo hotel Jóia da Mata, de mais de cem anos, com seus três andares em um prédio que já havia sido bonito e branco.

Os quatro amigos olharam em silêncio para as luzes dispersas lá embaixo. Talvez estivessem todos pensando: “Como eu vim parar aqui? E por que eu não saio desse fim de mundo?”

Lúcio, Surdo (apelido de Márcio) e Teco (apelido de Luís Roberto) eram filhos, netos e bisnetos de ausentes. Gaspar (apelido de César) havia nascido em Ausência, mas seus pais se mudaram para Porto Alegre quando ele tinha menos de um ano. Quando o pai ficou desempregado, decidiram voltar, pois pelo menos ali tinham uma casa própria, herança deixado pelos avós maternos ao único neto. Os três primeiros conhecem-se desde a infância; Gaspar foi recebido no grupo depois do incidente no Baile da Rainha da Primavera.

– Falando em cidade estranha, vocês perceberam uma coisa estranha? – perguntou Teco, olhando ao redor para se certificar do que ia falar.
– O quê?
– Estamos sozinhos há dois dias aqui no Morro da Gruta. Não apareceu ninguém. Nem os maconheiros de Caravela e de Campos Verdes (eles ficam irados quando a gente chama a cidadezinha deles de Capinzal!) que costumam vir pra cá, nem os casais de namorados lá da paróquia que vêm aqui pra fazer coisas abomináveis, como diz o padre Venceslau… Ninguém!
Os quatro giraram em torno de si mesmos, olhando com atenção, como se pudessem estar enganados. De fato, não havia ninguém. Desde o dia anterior, em que haviam chegado cedo pela manhã, ninguém aparecera ali, o que era incomum. O Morro da Gruta era o único ponto turístico da cidade, se é que podia ser chamado assim. Havia uma precária estrutura para acampamento, uma plataforma para salto de asa delta e uma vasta visão, que permitia aos turistas enxergarem grande extensão de matas, montes, rios e toda a cidade.
– Ninguém mesmo! – confirmou Surdo.
– Tudo em Ausência é muito estranho – sentenciou Lúcio. – Mas deixa pra lá. Vamos dormir, pois amanhã temos de descer o morro e voltar à rotina. O dia 5 nos espera cheio de alegria e novidades!
– É… Eu preciso mesmo – disse Teco, levantando-se meio trôpego. – Acho que me excedi um pouco na cerveja.
Teco não costumava se embebedar. Na verdade, nenhum deles bebia, de fato. Uma ou outra cerveja nesses encontros; Teco é que se empolgava um pouco. Mas ele não precisava muito para começar a ficar tonto ou a enrolar a língua. E nunca fazia isso longe dos amigos, que cuidavam para que ele não se metesse em confusão.
Os quatro começaram a organizar tudo o que era possível para, no outro dia, levantarem acampamento bem cedo. Como vieram a pé, tinham trazido o mínimo necessário: uma grande mochila para cada um com tudo de que precisaram. Dois dias à base de atum e miojo não matava ninguém. Guardaram, limparam, banharam-se no chuveiro frio que havia ali no imundo banheiro público (e, como sempre, Lúcio foi o que fez mais alarde: ele era incapaz de tomar banho frio sem gritar…) e montaram as quatro pequenas barracas individuais.
– Antes de dormir, a selfie da última noite! – Lúcio gritou, já preparando o celular e puxando os amigos para si.
– Claro, não podia faltar, né? O rei da selfie! – comentou, com alegre ironia, Surdo.
Lúcio sempre saia bem naquelas fotos. Com seus dentes perfeitos (os amigos zombavam, dizendo que ela tinha uns 60 dentes na boca, tão brancos e uniformes eram) e um sorriso vasto, cheio de alegria, parecia roubar toda a cena na foto com os demais. Mas a contrariedade dos demais era fingida: faziam questão de comemorar e registrar sua amizade.
Feita a foto, compartilhada entre todos (claro que Lúcio saiu com aquele sorrisão enorme de sempre!), foi cada um para sua barraca.

Aquela noite de janeiro estava agradável. Sem calor excessivo, com uma brisa ocasional para refrescar, permitiu a todos dormirem profundamente. Menos Lúcio.
Seu sono foi inquieto, com um longo e único sonho. O sonho não era ruim, mas… estranho. Estranhamente vívido – e era raro Lúcio sonhar. Havia algo… uma busca… um desconhecimento… uma angústia que parecia precisar ser dividida… ao mesmo tempo, um consolo… um afago que parecia tocar diretamente o coração… um frio incômodo que se tornava um terno acalento… e aqueles olhos… os olhos… Havia algo no sonho que Lúcio sabia ser sonho, mas também alguém… alguém que não era sonho, embora ali estivesse. Os olhos…

Surdo, Gaspar e Teco foram despertados quase ao mesmo tempo por uma estranha melodia, cantada por uma voz afinadíssima. A melodia não era exatamente entoada; era mais gemida, talvez. Como se uma dor ou uma angústia se manifestasse em forma de música. Saíram das barracas e, mesmo sem falar, pareciam todos compreender que se perguntavam a mesma coisa: que é isso? A melodia vinha da barraca de Lúcio.
Abrindo o zíper da barraca do amigo com cuidado, viram Lúcio, ainda dormindo, cantarolando a melancólica melodia.
– Como? Essa voz não é dele! – cochichou Gaspar, surpreso.
Lúcio brincava dizendo que este era seu único defeito: não tinha voz afinada. Gostava de cantar, mas tinha consciência de que não conseguia segurar a afinação, cantava com voz meio anasalada, desafinava feio na mudança de notas muito distantes entre si. Mas agora, de seus lábios, de sua garganta, saia aquele… som tão perfeito.
Surdo, sempre muito prático, sacudiu o amigo, enquanto o chamava pelo nome. Lúcio abriu os olhos, mas não parecia estar exatamente acordado. Olhava para os amigos de modo vazio, sem reação, como se não os reconhecesse, embora não se houvesse assustado ao vê-los.
– Lúcio, cê tá bem? Fala com a gente, cara! – sacudia-o com algum vigor Gaspar.
– Ah… Eu tô… bem, sim. Tô bem. Eu… eu… tava… sonhando. Não, não era sonho, mas… era sonho. Eu já… um dia, não lembro bem… encontrei… ela mesma. Mas eu achava… que era a lembrança… só uma lembrança… de um sonho. No sonho… ela disse que era real… um sonho… Uma música… ela cantou a música… pra mim… Que voz linda!… Ela… Azul… Os cabelos bem pretos… assim… cacheados… bem pretos… a estrada sem fim… enquanto cantava… Azul… os olhos… olhos… orientais… tristes… Como ajudar? A música dizia… outros também… eu não conseguia, longe dela… mas eu via os olhos… o vento cantava… a melodia agitava os cabelos… a estrada terminava… não chegava ao fim… Onde ela foi?… como eram pretos, com um brilho de… Lua… Azul… e melodia… ela cantava, era sua… seu pedido… seu… coração… Azul…
As palavras eram ditas no mesmo tom apático, sonolento, intervaladas por silêncios, embora o movimento das mãos e dos olhos indicasse uma forte emoção por trás delas. E Lúcio continuava a falar, quase as mesmas coisas: sonho, melodia, olhos, cabelos, Azul…
Seus amigos se olharam assustados, sem nada compreender.
Surdo, uma vez mais, tomou a iniciativa:
– Vamos levar ele pra tomar um banho frio. Ele deve ter batido com a cabeça, foi picado por algum bicho venenoso… Sei lá! Alguma coisa assim. O banho frio vai ajudar o Lúcio a despertar.
Com algum esforço, os três conseguiram tirar Lúcio da barraca e enfiá-lo debaixo do chuveiro. O choque da água não teve resultado algum. Embora a manhã estivesse fria, Lúcio não parecia sentir a água quase congelada que lhe caía sobre o corpo, bem diferente do jovem da noite anterior e de sempre. Isso foi suficiente para convencer os amigos que algo muito ruim lhe havia convencido.
– Gaspar, liga pro pai do Lúcio; não assusta muito o velho, mas diz que ele precisa vir buscar o filho dele. Teco, você me ajuda a secar o Lúcio e a colocar roupa nele – ordenou Surdo.

* * *

Seu Durvalino teve de se aposentar por conta de um AVC que lhe deixou com um lado do corpo com muitas limitações. Assim, teve de abandonar, pelo menos profissionalmente, aquilo que amava fazer: jardinagem. Todas as casas de luxo de São Gervásio dos Ausentes (incluindo algumas daquelas que ninguém via, escondidas nas áreas verdes. Durvalino nunca falava delas.) e das cidades próximas tiveram o jardim elaborado, plantado e cuidado por Durval das Flores, nome pelo qual ficou conhecido. Agora, pode, com muito esforço, cuidar de uns poucos canteiros em frente a sua casa e dar alguma manutenção a dois ou três clientes que fazem questão de seus serviços.
Durvalino casou com 35 anos, pois estava feliz solteiro, entregue à profissão. Até que conheceu Zélia num Baile da Rainha da Primavera. Ela também era apaixonada por plantas. Não tiveram filhos, e Zélia morreu cinco anos depois, vítima de uma estranha doença, que não foi bem diagnosticada, embora no atestado de óbito conste “câncer no pâncreas”. Dr. Noel, médico respeitado da cidade, não parecia muito convencido quando deu essa informação a Durvalino.
Seis anos depois, ele casou de novo, com Eloísa, filha única que acompanhava a idosa mãe que se mudara para a cidade. No segundo ano do casamento deles, nasceu Lúcio. Dona Elô quase morreu no parto. Isso fez com que o casal se apegasse ainda mais ao filho único, filho da velhice do casal. No ano seguinte, Durval sofreu o AVC.

Naquela manhã, ele deixou d. Elô dormir um pouco mais. Eles costumavam levantar-se no mesmo horário, bem cedo, sete dias por semana, fazerem suas orações matinais juntos; depois tomavam café (o pãezinho de banana era presença obrigatória) e saíam para caminhar por uma hora. Apesar das limitações, ambos procuravam manter-se fisicamente ativos. “Queremos partir saudáveis”, é o que explicavam. Mas naquela manhã foi diferente. Durvalino saiu silenciosamente do quarto. Permaneceu silenciosamente na sala. Olhava silenciosamente, mas inquieto, para os lados, como se por alguma parede ou janela lhe viesse uma notícia, uma explicação… Algo parecia lhe avisar que…
– Durval das Flores – disse, como de costume, ao telefone, ao qual atendeu logo que tocou, arrancando-o de seus pensamentos desconexos e aflitos.
– Seu Durvalino, bom dia! Desculpa ligar tão cedo. Ah, aqui é o Gaspar, amigo do Lúcio.
– Aconteceu alguma coisa com meu filho?
– É o seguinte… bem, a gente não sabe direito o que aconteceu com ele. Quando ele foi dormir, tava tudo bem. Mas ele acordou de manhã… muito estranho. Cantando com uma… É… falando de um sonho esquisito com uma música… e uma moça… e ficava repetindo…
– Azul?
– Como… como o sr. sabe? Bem, é, sim, é uma das coisas que ele fica repetindo. Ele tá do mesmo jeito ainda, falando nada com nada. A gente acha que o sr. precisa vir buscar ele.
– Vou agora mesmo ali no ponto de táxi pedir pro seu Rúben ir buscá-lo. Vocês estão no Morro da Gruta, certo?
– Isso mesmo.

Desligou o antigo telefone de baquelite sem nem mesmo se despedir do jovem. “Azul”, ele pensava, enquanto se encaminhava para a porta, colocando o boné que o acompanhava há muitos anos. “De novo…”.

* * *

– Não sei! – explicou Rúben, à pergunta da esposa.
– Meu velho, seu carro tava funcionando direitinho faz pouquinho tempo, né? Você me levou ali na casa da comadre.
– Pois é, minha velha. Não sei o que acontece. Ele não pega. Simplesmente não pega. Nem no tranco. E não tem nenhuma luz estranha acesa no painel! E eu sei que tá tudo em ordem com ele…
Depois de tentar dar a partida mais uma vez, deu um murro no volante e exclamou, desanimado:
– Como é que eu vou trabalhar hoje? O ponto vai ficar sem táxi!

* * *

Tão rapidamente quanto podia, Durvalino chegou ao ponto de táxi, que ficava perto de sua casa. Ali revezavam-se os três motoristas da cidade, conhecidos de todos. Alguns ausentianos diziam que eles trabalhavam no ramo desde o tempo das bigas romanas… Segundo a escala, que todos os cidadãos conheciam de cor, era o primeiro horário do dia, vez de Rúben estar no ponto. Mas seu vistoso carro azul não estava lá. Durvalino não reconheceu o carro branco que estava parado diante do abrigo.
Antes que ele chegasse ao ponto, da surrada poltrona estofada em que os motoristas descansavam levantou-se um homem – parecia saber que Durvalino estava vindo. Era um senhor negro, alto, aparentando uns 60 anos, cabelo acinzentado, bigode branco, de sorriso cortês. Estacionado, um carro branco, muito branco.
– Precisa de táxi, sr. Durvalino? – perguntou, inclinando-se levemente e indicando seu carro.
O homem tinha uma voz muito grave, solene, profunda.
– Desculpe, senhor…
– Luzano, senhor. Chamo-me Luzano.
– Eu achei que fosse horário do Rúben…
– Pois é… No entanto…
– Eu não lembro de ter visto o senhor aqui antes. É sempre o Rúben ou o Pardal ou o Salustiano… E como você sabe meu nome?
– Ah, sim! – Abriu um largo sorriso. – Numa cidade pequena, é difícil a gente não conhecer todo mundo, especialmente os moradores mais antigos.
Olhando fixamente nos olhos de Durvalino, com um sorriso um pouco mais contido, disse:
– Estou aqui para ajudá-lo nessa aflição.
Houve um momento de completo silêncio. Luzano mantinha-se absolutamente na mesma posição, olhando nos olhos de Durvalino que, sem mesmo dar-se conta, disse:
– O senhor sabe… eu tô preocupado com meu filho, Lúcio. Aconteceu… alguma coisa… é… estranha com ele. Eu preciso ir buscá-lo, lá no Morro da Gruta. O senhor… o senhor sabe chegar lá?
– Perfeitamente, sr. Durvalino. Mas permita-me sugerir-lhe que volte para casa e prepare as coisas – dizia enquanto se encaminhava para o assento do motorista no carro –. Seu filho vai precisar de cuidados especiais. E d. Elô pode ficar desnecessariamente preocupada ao descobrir que o senhor não está em casa. Em vinte minutos estou lá; então, no máximo em uma hora eu deixo o menino em sua casa. Não se preocupe.
Terminou de falar já dando partida no carro, que seguiu pela avenida.
Durvalino permaneceu ainda alguns instantes observando o veículo que se afastava, sem compreender o que havia ocorrido ali. Sentia que… sim, que tinha feito a coisa certa. E precisava voltar a fim de preparar a casa para receber o filho. E tinha de achar as palavras certas para explicar tudo para sua amada Eloísa. Ela era uma mãe muito apegada.

* * *

– Carro branco, seu Luzano… Entendi. Deve chegar nuns dez ou quinze minutos. Lúcio vai estar pronto.
Gaspar desligou o celular e avisou os amigos. Todos respiraram aliviados, pois não sabiam mais o que fazer e o que pensar.
Lúcio estava do mesmo jeito. Olhava para o nada, como se não visse ninguém, de vez em quando começava a entoar a melodia do sonho (mas não mais com a voz afinada da manhã), depois repetia aquelas palavras desconexas: sonho, cabelos, olhos, Azul, melodia… entremeadas com o que pareciam ser partes do tal sonho. Mas nada fazia sentido.
Seus amigos já haviam recolhido todas as coisas do acampamento. Sentados em torno de Lúcio, olhavam-se, esperando cada um deles que o outro tivesse uma explicação, uma solução, uma idéia qualquer para aquilo. Já tinham tentado contar piadas, colocar o violão nas mãos de Lúcio para que ele tocasse, estimularam-no a pular, fizeram muitas perguntas. Nenhuma reação. Ele não tinha febre, suas pupilas respondiam à luz, até comeu um pouco do lanche que lhe puseram na boca. Mas estava cada vez mais apático, sem reação. Era como se não estivesse ali.
A espera pelo táxi gerava nelas uma enorme aflição. Não sabiam o que fazer. Não sabiam o que pensar. Tinham a impressão de que a vida do amigo estava por um fio, como se sua apatia fosse engoli-lo. Cada um deles pensava ser culpado daquilo, por uma razão inexplicável qualquer. Lúcio foi quem teve a idéia de acamparem, mas… por que aceitaram?
– Tô vendo muita poeira na estrada do Morro. Um carro tá chegando! – gritou Surdo.
– Finalmente!

Teco, que ainda se sentia um tanto sonolento (ele demorava para se recuperar do exagero na cerveja) ficou um pouco mais para trás, com as mochilas, enquanto Gaspar e Surdo amparavam Lúcio e o levavam em direção ao carro. Por estar com a mente ainda embaralhada, Teco não sabia se estava vendo direito, mas havia alguma coisa estranha no carro. Ele levou alguns instantes para compreender o que era: o carro estava imaculadamente branco. E a parte final da estrada que dá acesso ao Morro da Gruta é sem pavimentação, de terra vermelha. Não chovia há uma semana, o que provocou a grande poeira que Surdo tinha visto. Era impossível para um carro branco passar por ali e manter-se branco.
“Coisa da minha cabeça. Não tô vendo nada direito”, disse para si mesmo, enquanto puxava duas mochilas em cada mão.
Ao aproximar-se do carro, viu que seus amigos se preparavam para colocar Lúcio no banco de trás. E teve uma idéia repentina.
– Caras, vamos tentar só mais uma coisa. Parece bobeira, mas a gente sabe que é uma coisa que mexe com o Lúcio. Uma selfie! – ia falando, enquanto já tirava o celular do bolso e gesticulava para os amigos se ajeitarem. – O senhor também, seu motorista.
Os demais, talvez cansados pelas tentativas infrutíferas anteriores, acharam que não custava tentar aquela sugestão sem pé nem cabeça. Quem sabe?
O resultado, no entanto, foi o mesmo: Lúcio, meio encostado no sr. Luzano, seguro pelos amigos, não mudou em nada seu ar vazio, apático, sem vida.
– Tá, cara. Valeu pela tentativa. Coloca as mochilas no porta-mala… Só cabem três. Eu levo a outra – ordenou o gerencial Surdo. – Teco, entra aí. Você tá meio grogue ainda. Faz companhia pro Lúcio. Eu e o Gaspar vamos a pé. Meu celular tá quase morrendo. Só liga, então, quando chegarem na casa do Lúcio.
– O meu tá do mesmo jeito – acrescentou Gaspar. E, voltando-se ao motorista, que já havia ligado o carro, pediu-lhe:
– Seu… Luzano (é isso, né?), por favor, leve com carinho esse cara aí. Nós gostamos muito dele.
Depois de olhar por um instante diretamente nos olhos de Gaspar, o simpático motorista, sorrindo, disse com sua profundíssima voz:
– Tenha plena certeza, meu jovem, de que ele está em boas mãos. Em muito boas mãos. Até mais.

* * *

– Por que você não foi junto? Como é que você confiou naqueles avoados dos amigos do Lúcio? Você sabe que o apelido de um deles é Surdo? Surdo! Onde já se viu isso? O que significa isso? Surdo? Ele é surdo, por acaso! Ainda por cima, é um desrespeito com quem é surdo de verdade… E quem é esse motorista? Surgiu de onde essa criatura? Você nem sabe o nome dele! Luzano? Isso não é nome de gente, Durval. Vai ver é até inventado! Durval, por que você não foi junto, Durval? Você que é tão atilado pras coisas, Durvalzinho! E meu filho, meu filhinho, meu bebê grande…
Dona Elô caminhava agitada de um lado para o outro da sala, inconsolável. E a falta de resposta do marido a exasperava ainda mais.
– O que houve com você, Durvalzinho? Você nunca foi assim, sem ação! O que houve, Durval? Por que você não foi junto, Durval?
E no íntimo de Durvalino, a única resposta que ele dava para a mesmíssima pergunta que se fazia era: “Não sei. Não sei…”.

* * *

– O que você fez?
– Não sei, minha velha. Não sei. Eu só… sei lá: liguei o carro. A mesma coisa que eu já…
– Tá bom, tá bom. Não interessa. Amanhã você leva essa encrenca lá na oficina do Santana. Agora, corre pro ponto que você já tá bem atrasado. E não esquece que a gente tem de visitar sua mãe hoje à tarde.

* * *

Teco olhou para Lúcio, que não demonstrava nenhuma alteração. Pensou em puxar conversa com o motorista, mas achou que poderia distraí-lo da perigosa estradinha que levava até o centro de Ausência. Além disso, o balanço do carro e o sono o venceram. Dando uma última olhada para Lúcio, para se certificar de que nada havia mudado, dormiu profundamente.
Ainda dormindo, começou a ouvir uma melodia. Aquela melodia. Agora cantada por uma voz feminina. Límpida, suave, cheia de ternura que não escondia tristeza, uma voz que não parecia ser… A mesma melodia estranha.
Teco fez um esforço enorme para abrir os olhos. Não sabia ao certo se já estava acordado ou se tudo não passava de sonho, influenciado por tudo o que Lúcio havia repetido dezenas de vezes. Mas, quando sentiu a mão de Lúcio tocá-lo, despertou repentinamente, olhos arregalados, coração disparado. Lúcio, a seu lado, sorria para ele com aquele seu conhecido sorriso. E apontava para a frente:
– Olha!
No lugar do motorista estava uma mulher. De cabelos muito, muito pretos, cacheados e brilhantes, de olhos orientais. Ela se virou rapidamente para Teco e sorriu.
– Azul –, disse Lúcio.

* * *

– A essa hora, o Lúcio deve estar chegando em casa. Logo o Teco ou o velho liga pra gente avisando. Imagino que seu Durval deve ter chamado o médico lá de confiança deles – comentou Gaspar, conferindo o relógio.
O sol já estava bem forte. Soprada pelo vento, a poeira vermelha da estrada cheia de curvas se apegava ao suor dos dois. Eles não haviam conversado muito até aquele momento. Parece que todas as sugestões e acusações que lhes passaram pela cabeça haviam drenado sua comum disposição para falar.
– O que terá acontecido com nosso amigo?
– Espero que o médico descubra. Que coisa mais estranha, né? E… acho que nem lembrei de contar. Quando liguei pro pai do Lúcio, ele mesmo falou…
– Olha ali! – gritou Surdo! – Não é o Teco? Ali, do lado da estrada, com as mochilas? É ele mesmo!
Enquanto corriam até o amigo, o celular de Gaspar tocou. Era seu Durvalino.
– Como assim ele não chegou ainda? – perguntou Gaspar, sem compreender direito o que ouvia.
Surdo chegou a Teco que, sentado sobre as mochilas, olhava para o celular, com o mesmo olhar vazio de Lúcio. Na tela do celular, a última selfie; nela, Lúcio aparecia sorrindo encostado a uma mulher. De cabelos muito, muito pretos, cacheados e brilhantes, de olhos orientais. Teco balbuciava uma melodia. A estranha melodia.

(scs 2421)

(Foto de Rachel Claire no Pexels)

E a linda menininha?

Hamilton é vizinho de Charles. Charles não gosta de Hamilton. Não gosta. Não gosta de nada que Hamilton faça, escolha, diga, vista. Quando Hamilton fez uma reforma no apartamento, Charles disse que ele iria destruir o prédio. Quando Hamilton distribuiu cestas básicas, Charles disse que ele estava envenenando os pobres. Quando Hamilton elogiou o trabalho da diarista, Charles disse que ele a estava seduzindo. Quando Hamilton qualquer coisa, Charles não gosta. Não gosta por vir de Hamilton.

Charles tem uma amiga, Deysiane, que ficou viúva muito cedo, com uma filha pequena. Linda. Deysiane é amiga também de Hamilton. Charles gosta muito da Deysiane e da linda filhinha dela, mas não admite que ela seja amiga de Hamilton. É o que ele mais odeia em Deysiane, de quem gosta muito. Ele leva presentes para a linda menininha, mas sempre diz pra ela não mostrar pro Hamilton. “Ele pode até roubar”, pensava Charles, odiando Hamilton uma vez mais. “Eu tento avisar, eu tento.”

Hamilton tem um grande amigo, Jean. (Logo, Charles odeia Jean.) Jean é equilibrista. Renomado. Muito ousado no que faz, mas também muito cuidadoso. E muito dadivoso. Tinha fama, mas não tinha fortuna.

Um dia, Jean decidiu fazer uma grande exibição: iria atravessar a distância entre dois prédios em cima de um cabo de aço. E carregando uma pessoa nas costas. E de olhos vendados. Hamilton aprovou e ajudou a patrocinar o evento. Charles odiou. Se Hamilton apóia, com certeza não presta, tem alguma segunda intenção por trás. E ele, Charles, ainda conseguiria provar que estava certo em sua opinião sobre Hamilton.

No dia da grande apresentação, lá estavam centenas de pessoas. Embora ela acontecesse em espaço aberto, Hamilton sugeriu a Jean que pedisse um quilo de alimento não perecível para quem fosse assistir. Sugestão aceita. As pessoas concordaram. Centenas de quilos de alimentos foram reunidos para uma entidade assistencial que cuidava de idosos, incluindo a avó de Charles. Charles odiou. Disse que era demagogia. Foi assistir, mas não doou nada. Ele também nunca visitou a avó naquela casa de cuidados.

Jean, na beira de um prédio, avisou que começaria a travessia. E que levaria às costas uma criança. Um grande “Ooooooooooh!” se ouviu na multidão. Charles pensou: “Irresponsável!” Jean anunciou que levaria Marina, filha de sua amiga Deysiane. A multidão aplaudiu. Charles pensou: “Essa Deysiane é uma irresponsável. Colocar a filha nas mãos desse maluco. Cada coisa…!”

Jean começou sua apresentação. Multidão em silêncio. Hamilton atento. Charles pensava: “Esse irresponsável vai cair lá de cima. Aí, todo mundo vai ficar sabendo quem ele é. E vai pegar os alimentos de volta. E esse ridículo do Hamilton vai ser desmascarado. Tudo mundo vai ver que eu sempre tive razão. Esse Hamilton é um picareta!”

Jean avançava, lentamente. A menina quietinha a suas costas, tranqüila, tudo observando. Charles torcendo para estar certo.

Quando faltavam dez metros para chegar ao outro prédio, um forte vento sacudiu o cabo de aço. A multidão se afligiu. Jean parecia perder o equilíbrio. E então…

 

(Fonte da imagem)

Outras areias

– Acho que era principalmente por causa daquele seu jeito particuloso. Não havia o que lhe chamasse a atenção quando não queria, quando tava lá sumida naquele mundo seu só dela.
– Nem os amigos, próximos?
– Não, nem. Era uma mudeza, de olhos, que ninguém entrava, fazia parte. Mesmo que chamando o nome dela, não respondia se tava no lá longe dentro-de-si. Como podia? No início, todo mundo se incomodava, gritava até, xingava ela. Achavam que era desrespeitante, um modo… Então, com aquele seu sorriso branco, de frescor da tarde, de uma calma de coração que era tanta, tudo se acalmava. A gente não entendia, mas parecia entendê. Aceitava. Ficava tudo bem. Aos dispois, já nem mais perturbava mais ninguém já conhecido. Era o jeito dela, era ela assim. Desse modo, assinzinho. Então, não tinha razão de irritá. Mais era aprendê a aproveitá a companhia, a presença, a sabedoria, a doçura. Quando falava, ah!, ficava o povo tudo quieto! Daquela boca miúda, desenhadinha de pintura, brotava coisa que ninguém imaginava donde vinha! Ela desenrolava os problema mais enroscado, os causo de família, aqueles assunto que ficava no escondido do coração que nem a pessoa sabia que tinha. Os velho aceitava, as criança entendia, os mais ignorante não tinha dificuldade na compreensão das coisa. Ela falava na medida que se precisava, sem sobrança de palavra, sem enfeitamento de gramática. Só o exato. Como uma faca bem afiada, cortando e chegando no miolo, no tutano. Nunca carecia de erguer a voz, de exaltar no tom. Só mesmo a fala mansinha…
– Mas teve o sumiço?
– Ah! Foi uma comoção sem tamanho! Naquela manhã, parecia tê um… uma coisa ruim no ar. Alguém comentô que os passarinho não tava cantando. A estranheza que não se sabia o quê. Tinha um trem apertano o estômago de todo mundo, um desatino na cabeça. Mas só aos dispois é que a gente se apercebeu disso tudo. Quando viu que ela tinha sumido. Como? O quarto pequenino dela continuava fechado por dentro, e já passava umas hora que ela não aparecia – tiveram de arrombá a porta com pé-de-cabra e ombro. Lá dentro, tudo igual: ordeiro, perfumado, os lençol esticado, o vaso com flor do campo. Em cima da mesinha, uma folha de papel com um desenho lindo de uma paisagem, vista duma praia deserta que tinha uma moça sozinha caminhando. A moça do desenho era ela mesma! Pequeninha, mas dava pra sabê que era ela: os cabelo ruivo claro no vento, o vestido comprido branco que ela gostava muito, o jeito de segurá as sandália que tinha… Um assombro, porque ninguém nunca sabia que ela desenhava! Fazia muito bordado, crochê, costura, mas desenho?! E, num canto do papel, escrito com a pena que tava ao lado, ainda molhada de tinta, com a letra redonda de professora dela, umas palavra de oculto significado: Imaginei outras areias, ei-las, mas os passos vacilam.

– E depois?
– Procuremo ela por todo canto. A vila toda saiu na busca. Não tinha explicação, não tinha rastro nenhum, ninguém não tinha visto nada. Como era muito conhecida, não tinha como alguém não sabê que era ela. Mas sumiu. Assim. Dum quarto fechado, sem tê como. Era uma pessoa como que nunca tinha existido ali. A vida de tudo nós ficou uma tristeza que só. Não tinham vontade de comê, de estudá e cartilha, de ordenhá as vaca nem brincá no galpão. Até as moça que tinha inveja dela, por causa da beleza, se arrependia e sofria. Foi um fim. A vila toda ficou de luto, abatida na tristeza, silenciosa.
– Pra sempre?
– Cabo duns seis mês ou mais um pouco, era um domingo de manhã, invernoso, mas não tava frio, como era de costume por aqui. Ninguém ainda tinha notado isso, quando a gente ouviu. Primeiro, foi um passarinho que não canta nessa época. Depois… a mesma vozinha doce, amorosa, de embalá bebê, que cantava as beleza da terra, dos sonho do povo, dumas esperança de céu e paz, com umas palavra nova, nunca de ouvida… A mesma vozinha que acordava os dia, a fazenda. Era ela! Corremo pro quarto dela, donde vinha a voz, coração aflito, alegre, animado, se perguntano. Linda como sempre, o olhar de criança, o sorriso de gente que ama: ela tinha voltado! Tava saindo do quarto, nem ficou surpresa com nós tudo olhando prela com aquelas cara espantada. Pareceu não vê nada de diferente, pareceu que não tinha acontecido nada demais. Deu um beijo em cada um de nós e foi pra cozinha, prepará o café.
– E assim?
– Fiquemo sem sabê o que fazê. Se olhemo, fiquemo com medo de estragá a alegria dela tê voltado, não sabia o que dizê. Uns até se beliscô, se achando em sonho. E num era. Então, esperemo um outro momento do dia, outra hora mais no molde de fazê inquirição. Mas o dia foi se passando, os pessoal foi sabendo, veio visitá… e quando via ela, ninguém tinha de coragem de perguntá nada. As pergunta ensaiada morria na garganta, sumia num só. Se virava só na alegria dela tá ali, vivinha, de volta. Não sei. Parecia que a presença dela, ressurgida, já explicava tudo, já dizia que tava tudo bem, que o mais importante era aquilo dali, ela e nós de novo junto.
– Mas no depois?
– Nada. Nunca falemo no assunto. Nunca subemo onde que ela teve aqueles seis mês. Ele nunca falô nada, nunca se explicô. Parecia até que ela nem sabia que tinha se ido. A gente só sabia que tinha alguma coisa bem forte, misterienta.
– Por quê?
– Porque ela nunca mais teve aquele olhar particuloso, de se perder em pensamento, como se não tivesse com a gente. Seu olhar era… diferente, mais amplo, sossegado. Parecia tê achado uma resposta, o fim. Foi desse modo que minha filha, Sibele, sumiu e retornou.

Silenciou um instante, olhou para o lado como se buscasse uma lembrança que teimava em fugir.

– Sabe –, retomou falando devagar –, uma coisa… Na hora, a gente nem deu atenção, mas… outro mistério. Na sandália dela tinha uma areia muito fininha. No outro dia, ela tinha colocado a areia num vidrinho, de perfume vazio, que agora fica sobre a mesinha. Vez que outra, eu chego de mansinho no quarto e vejo ela olhando pro vidrinho, quieta, sem se mexer, sem saber que o resto do mundo existe ainda. Aquele antigo olhar…

(scs, 30714)

Salvar

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o suco

Seleção_010Trazia por nome Daniel. Como aquele que não teve medo de leões. Não tinha. Mesmo não conhecendo. Os tratos tantos do mundo lhe asseguravam.
Era um rosto sem sorriso nem palavras. No olhar, uma paz amarga bem assentada; o amanhã não era longe nem assustava. A pele marcada das muitas madrugadas em que o sono era só lembrança,
a testa sombria do peso imenso presenteado pelos muitos ontens. As mãos grandes, sulcadas da lida no campo, esboçavam um caminho ocasional, mas nunca permitido. Secavam as poucas lágrimas que raramente fugiam. O cabelo grisalho que o vento levantava sem esforço dizia que existia há muito, por dias infindáveis.
Sentado à sombra da árvore, tão solitária no vasto mundo como ele, mordia lento a fruta doce, o sumo pingando pelo canto da boca não incomodava. O dulçor ácido lembrava que nem tudo fora sempre desamparo. Mastigava sem vigor, desfrutando da polpa macia, os olhos repousados no lá longe, numa nuvem pequena no horizonte. Única nos céus. Tudo falava de ser só.
O ambiente era silêncio. Nem vento soava nas muitas folhas, pássaros emudecidos voavam distantes, o riacho fugia sem voz. A multidão de seus pensamentos gritava em sua mudez. Tantas coisas, mementos, o passado que podia ter sido, o que não queria, tudo que teve de, o dia aquele… As idéias giravam, gritavam, coloriam, riam, zombavam, se desvaneciam uma antes da outra e também depois, deixando tudo mais confuso e vazio, sem gosto, como se nunca estivessem ali.
Novo naco da fruta. O único barulho era aquele.
Piscou os olhos com força, como se isso o mantivesse vivo e afastasse os leões, os que não havia, mas existiam por ali, querendo tragá-lo, andando ao redor de dentro dele. Funcionou. Eles se afastaram por uns dias, talvez. O suco doce seco no braço atraiu uma abelha, zunindo de encher os ares, um som imenso de vida inquieta.
Mal teve tempo de lhe voltar os olhos e um sorriso minguado lhe escapuliu dos lábios. Logo morreu, não sem antes germinar-se em esperança.
Ficou ali, assim, agora pálpebras fechadas, vendo só com a alma.
Arrastava pela vida o nome de Daniel. Não sem luto ou desespero. Teimosia de viver. O suco.

(poa, 151214)

Linda

– Desvivo precário.

– Ainda a dor? –, perguntei o mais suavemente possível, depois de pensar por uns instantes. O que dizer? Queria de ajudá-lo, mas tinha medo de não compreendê-lo e sua dor, ainda.

Ele ergueu a cabeça, os espessos cabelos brancos ondulados foram ajeitados com a mão. Olhou para mim. Na verdade, não pra mim, em meus olhos, mas pra um lugar além atrás de mim. Não para a mata pertinha da casa, florida, de aromas frescos de primavera que estava se findando, com tantos barulhos miúdos, que pareciam um silêncio. Pralém. Pruma lembrança, uma busca, uma saudade.

Respirou fundo. Parecia dizer que minha pergunta era tola, que não precisava responder, pois eu já sabia a resposta. Não. Respirou fundo pra ter coragem viril de enfrentar a pergunta. Era homem de tantos anos e coragens, mas não fora preparado para aquilo. Para a pergunta.

– A vida –, começou na voz baixa e rouca com que sempre falava de si mesmo – é uma semeação. Começa pequena, na semente brotando, sai da terra, se aproveita do sol e da água. Cresce. Vai se crescendo. Viçosa planta. Fruteja. Encanta. Tem cor e cheiro. Alegra. Ao depois – uma pausa longa, os olhos baixam para olhar as mãos grossas e trêmulas – vem a ceifa. E se foi-se a planta. Existiu, mas não mais. Assim é. Com cada e todos.

Respeitei seu silêncio. Esperei.

– Foi num janeiro. A festa era de batizado do neto do Dr. Deocrécio. Festa bonita. Eu tava lá, recenzinho entrado nos vinte ano, asseado, de calça de fatiota, o calçado desacostumado do pé apertava. Mas era beleza e orgulho, no meio dos pessoal da cidade, como se fosse como eles. Nem não quis beber, pois tinha medo de me escancarar em fiasqueira. Ficava só espiando, as gente alegre, familiar que se reencontravam, abraços e apertos de mão, parecendo mesmo que tudo era coisa feliz, de bom se rever. Eu era só eu, sozinho, sem ser da família de ninguém. Tava só existindo aquele dia no meio da festa, nem bem convidado era. Apenas ali. Não queria perturbar ninguém, não queria atrapalhar o corre-corre, o festejamento de quem era de direito. Assim, mesquivava de todos, comia só umas coisa pequena, bebia um copo dágua. No meu canto. E era, do meu modo, a meu assentado, feliz. Eu achava que já era tanto muito aquilo que a vida me deixava eu viver. Já era quase a minha ceifa. Quase o meu destino finalizado. Uma festa pra ver os otro alegre. Me agradei do pensar assim. E quase já tava me indo, voltando pro meu nadinha…

– Então foi que, num valseado, eu vi a moça. Nunca meus olho se deparou com criatura de meu Deus mais linda. Uma perfeição de gente! Uma imaginação ali viva. O vestido era duma branquice que só, um cabelo lisinho, comprido nos ombro, que a brisa mexia. Parecia envergonhada da gentarada. Ficava meio apartada do povaréu, um prato de salgadinho na mão, num recato imenso. O olho preto era lindo e cheio de esperteza e eram tímido também. Comecei a caminhar pro lado dela, sem nem decidir. Fui só indo, achando um chamado praquilo, um vem-aqui no ar, sem palavra.

– Quando viu eu se chegando, pensei que ela fosse correr. Mas me olhou eu e só deu foi um sorriso imenso, de branqueza dos dente branco, da alma branca que ainda mais. Pareceu até que já sabia que eu existia. Sentemo num banquinho meio pra lá, e a conversa corria feito um corguim, cheia de risada, de respeito, de delicadeza. E a gente nem tinha se perguntado o nome. Pra eu, ela era só linda. O tempo não sabia se corria feito passarinho fugido ou se se arrastava com preguiça de fim de tarde. Senti que a gente tinha sempre se conhecido, mas também era tudo uma novidade, de duas pessoa que se descobria…

Ele parou. O barulho na mata também. Um silêncio completo nos cercava. Nada podia competir com a história da dor dele. Esfregou as costas das mãos uma na outra; mania quando alguma coisa lhe apertava o peito, uma lembrança ruim, um dissabor, um vazio. Apertou os olhos, para relembrar a cena.

– A prosa se discorreu até muito depois da tarde, dos pessoal indo desfazer os festejo, de levar a criançada pra dentro, pro banho de bacia, as empregada limpando tudo e fofocando. Ninguém nem viu nós, linda e eu. A gente só existia um pro outro, nem pra ninguém mais. A lua tava meio espiando o mundo de dentro dumas pouca nuvem que tinha. E o cabelo preto dela brilhava inda um tanto. E o sorriso era mais branco que a lua. Mas parecia que nem se havia precisão de muita luz por causa que o olho e o sorriso e a pele clarinha e a alma dela era tudo tão linda que alumiava.

– Nem rimos muito de dizer bobícia. O riso que vinha era de descobrir que eu e ela nós dois pensava igual em muitas arte da vida. Uma grandeza! Do apreço pelas flor amarela, do respeito pelos mais velho, do sonho de morar numa casinha na beirinha dum riacho, da solidão que certas noite traz, em tudo nós era igual.

– Era como se a vida tivesse feito nós dois em duas metade, apartada, mas sendo uma coisa só, com um tanto do todo em cada uma. Você é muito sem experiência de vida e nem não vai entender isso. É coisa do misterioso da existência, uma filosofia. E nós não nos dissemo isso. A gente só sabia, só descortinava, só se reencontrava pela primeira vez no pra sempre. Então, ria um risinho faceiro, desmedido, entoado de feliz. Linda e eu.

– Num momento sem mais, ficamo os dois em silêncio, palavras engolida, nada de dizer. Parecia nem respirar, nem carecer. Vendo nos olhos, bem lá no dentro, se espalhando na alma um do outro, refulgente, amoroso. Eu olhava os olhos pretos mais negros que a sem-luz, mas que eram sossegado, de paz, carinhoso, um afago. E eles me atraía, me chamava eu, minha boca, tudo eu, pra mais perto, mais perto… Toquei o rosto dela de levinho com a ponta do dedo, pele macia, fria pela noite. Ela sorriu bem pequeno, mas tão linda. A boca se abriu um poquinho, me chamando sem som. E nós nos beijamos.

Meu tio silenciou. Havia uma lágrima escapando pelo olho. Um sorriso de lembrança feliz, mesmo com uma tristeza adicionada. Era um alembramento bom. O brilho nos olhos dele dizia isso. Não era de apressá-lo. Ele voltaria no momento certo.

– E nós nos beijamos. Com muita doçura. Ela tinha um frescor de hortelã, um gostinho de… Foi tão delicado, tão cheio de ternura, de paz. Tão linda! Beijo longo que nem sei, mas foi. Nem pensava em nada. Deixei de estar no mundo. Nem vivia mais, só sentia. Respirava ela. Um sumição. Quase ouvia suas palavra falando dentro da minha boca, me contando seu amor, seu sonho comigo, que me queria pra ela pra sempre. O beijo arrancava nós dali, fazia viajar num não-sei-onde, de tanta felicidade, de encher o coração de contentamento, o corpo num descanso aflito, aconchego.

– Foi com um rainho de sol que o beijo terminou. Abrimo os olho, e tava os dois ainda ali, rosto feliz como o quê, brilhoso, um amor que se via, inseparável. Eu peguei na mão dela, sem deixar de olhar fundo na negridão do olho lindo. A mão pequeninha, macia como…, quentinha agora, meio tremendo (era o frio ou o amor), com um anel de pedra miúda. Falei: “Você me queria eu como seu pra sempre?” “Quero, sim”, ela falou de chofre, sem nem pensar, sem piscar, com um sorriso ainda mais grande.

– Então, o padre… Sempre nem lembro bem se era o Enísio ou se era o Jalmiro. Era uns dois muito simpático, velhinho de cabelo branco, mas cheio de vigor, de seriedade com os sagrado e divino… Acho mesmo mais que era o Enísio, que tinha dormido na casa do Dr. Deocrécio, já tinha se levantado, tava por ali. Umas senhora da fazenda, damas de belo porte e carolice. Corremos pra ele. Falamos do nosso amor, do beijo, das estrela que choveram em nós na madrugada, das almas que eram tão uma só… O padre entendeu. E sorriu um seu sim de abençoar e sacramentar. Uma mocinha cortou umas florinhas como aquelasli – fez um gesto difícil, apontando com o dedo enrugado e triste flores amarela, branca e lilás num canteira em frente da casa – e fez uma grinalda muito arranjada e mimosa. A renda grande que usaram em cima do cobertor do nenê batizado se tornou-se o véu, comprido de pureza. Me arranjaram um paletó pra mim, direitinho que ficou no meu tamanho. Uma gravata de seda. Uma água de colônia boa. E ela, linda, como mais ainda tava ficando, enoivada pelas cumadre. Uma alegria no ar.

– Dr. Deocrécio apareceu e se interou-se do ocorrendo e foi logo chamar os músicos: tinha duas rabeca e dois violão, dedilhando bonito, aquela música: lá-lá-lá-láááá… – eu não identifiquei a melodia, na sua voz tremendo e rouca, meio engasgada. Os olhos brilhava, como se ele tivesse vendo ali mesmo a cena do antes.

– Ele aprumou todo o rebuliço, ordenou a criadagem e num tantim a festa tava aparelhada. O bolo com um casal em cima, uns doce, muita flor e contentice. O padre. Os padrinho foi uns três casal dali, primos e parentes, eu acho. Era hora dos voto, das pergunta mais séria dessa vida. O padre Enísio fez um pigarro de gente importante que vai discursar e perguntou: “Você quer receber a Linda como sua esposa, como se fosse um presente do céu, pra cuidar dela com mimo e respeito enquanto seu coração viver?”

– Eu olhei lá dentro do olho dela e disse: “Sim, é o que eu mais quero pra sempre”. Ele falou: “Linda, você que se encantou com ele com a graça da sua alma e debaixo das estrela mais linda, você quer mais ele que qualquer outro no mundo enquanto respirar nessa vida?” Ela baixou os olhos um momentinho e, depois, me olhou com a maior beleza que já vi, com um sorriso tão do grande que quase ofuscou eu, e me disse, uma voz tão forte mesmo sendo meiga: “Eu quero ser só sua pra sempre e o mais.” “Eu vos declaros vocês dois marido e mulher!”

– Ah! A felicicidade! A música, os aplauso, a alegria de todos, inté as criança se abraçava e vinha nos dizer parabéns e tudo de bom. O sol parecia brincalhão, com uns raio bem em cima da Linda, alumiando as flor da paineira e da grinalda, a beleza, tudo ela, que nunca existiu pessoa mais formosa e perfeita. Eu ria de não acreditar que pudesse um dia ter conhecido ela e casado e chegado a ser o homem mais feliz do havido. E um tanto de presente que ia se avolumando numa mesa: umas roupa bonita de cama, um chapéu daqueles, uns vestido mais estupendo que os outro, uma panela de barro, um tamanco com enfeite, um balaio de verdura, provisão pra mais de mês… Nem sei tudo de quanto que ganhamos. Descobri o tanto que os pessoal nos gostava naquela manhã de nunca mais. Num janeiro.

– E veio a danceira e a comilança. Se alegremo todos, com decência, sem algazarra, das senhora e crianças não ser incomodada nem carecer de conversinha de risinho dos desmodo ou sem pudismo. Foi tudo tão intacto como a beleza de Linda, do nosso amor, do sonho que não se despertava, da música carinhosa…

Um suspiro saudoso, um olhar para mais além, o olho se avermelhando. A dor.

– Numaolhada um pro outro, nós se combinamo de sumir da festa e ir pra nossa casinha, na berinha do riacho, se amar, viver de só nós dois, se alegrar de agora existir numa vida só única. Peguemos umas pouca coisa que ia se precisar e escapulimo. Até que sem pressa, da alegria que era tudo que se fazia junto, de não ter mais lonjura e poder ficar sempre com o outro. O caminho até nossa casa, branquinha, era dum capim baixim, macio, quase um tapete da casa grande. A gente ia deixando as pegada no capim, a estrada pro lugar de ser feliz.

– A casa. O fogo no fogão aquentando tudo. As cortina branca. As fruta cheirosa em cima da mesa. Flor pra todo canto. E nosso quartinho… Eu peguei Linda nos braço, beijei sua boca de hortelã… Nossa cama.

Novo silêncio. O olho agora procura alguma coisa mais longe ainda, no horizonte, num onde que não existe ou que foi um dia. Ele parece que não lembra mais que eu tô aqui. Tá falando com ele mesmo, uma lembrança em voz alta. Eu aguardo. Consigo ver que é a dor. Um longo tempo.

– Nunca ninguém não vai conseguir dizer com as palavra o que foi aquele dia de lua-de-mel. De contentamento tanto o peito parecia que nem ia vencer. O olho piscava pra acordar, mas não era sonho, mesmo que era, o sentido, a presença, o desafogo de alegria. Uma intensidão de amor, espalhado pela casa, na pele, assoprando a alma, o deslumbre de um sentir o outro e o amor. Fica uma marca mais perene que de fogo. Nunca se apaga. Nunca. Nunca…

– Então… aconteceu… o impensado. O desespero. Não podia… Logo, naquele quando? – A voz queria se manter firme enquanto as lágrimas abundantes desciam. O mesmo olhar, agora com toda dor. – Eu acordei de manhã, estonteado de feliz, arrebatado… mas Linda não tava na cama. Achei que tivesse ido preparar o café. Não tava na cozinha. Nem no quintal. Nem lá fora. Gritei. Chamei. Corri. Procurei. Perguntei. Vasculhei as mata, o riacho, andei quilômetros afora, entrei em gruta, em tapera abandonada, em casa dos outro… Nada. Linda… sumiu. Como se nunca tivesse sido.

Era essa a dor. Agora, com a cabeça baixa, com as mão por cima dela, não querendo ouvir o que ele mesmo disse, chorava. Chorava o choro de todos esses ano que Linda se foi.

Esse é meu tio, Deocrécio. Eu chamo pra ele de tio Decinho. Amo muito demais ele, que me cuidou sozinho depois que meu pai, seu Jalmiro Astrúcio, faleceu, picado de cobra. Ele que sugeriu a meu pai que meu nome fosse Enísio. Queria que eu fosse sacerdote, como ele nunca pôde de ser. Agora que tá velho e sem sustento, só eu venho visitar ele e ouvir sempre a história de dor da Linda, a mulher linda que nunca existiu.

mãos brancas

A cena todo tinha um quê de angústia. Talvez fosse a música baixa, meio desafinada, com notas soltas ocasionais, inóspitas, como sussurros desesperados que escapavam ao silêncio. As cortinas fechadas, desbotadas, abandonadas sobre janelas de vidros quebrados, dobradiças enferrujadas, há muito sem uso. Havia ali uma angústia no ar, um aperto na garganta invisível que andava de um lado para outro.
O que era? Onde estava?
Parecia espalhar-se, como a poeira sobre os móveis, como o cheiro de mofo – uma névoa inexistente que enchia o vazio, expulsando todo ar puro, todo calor do Sol. Era um frio de alma, um desconforto de menino abandonado. Ninguém o apalparia, mas seria esmagado por ele tão logo entrasse na velha sala, um cemitério de veludo bordô, tachas de latão, poltronas de espaldar alto, teias e silêncio.
O Sol, preso lá fora, queria invadi-la, desvirginar sua viuvez, soprar vida sobre o espelho embaçado, que não olhava mais ninguém, de rugas profundas na prata escurecida; queria incendiar o frio de solidão; queria fazer as flores mortas no quadro da parede sorrirem de novo.
Mas as mãos brancas e frias sabiam daquela intenção. E mantinham as desbotadas cortinas mortas bem fechadas, condenando à solitária perene o Sol.

naquela tarde, em que encontrei mykaela wondracek

Foi às 2. (Seu Albuquerque Maximiano sempre dizia: Não é 2, é 14 horas, 14! 2 é da manhã. o dia tem 24, dois ciclos de 12 horas. Se não explica, ninguém sabe a qual ciclo você está a se referir. Então, 14, 14 horas!) Eu cheguei 13 minutos antes das 2. As três não haviam chegado ainda. Então, esperei com paciência.

Sempre fico irritado com atraso e com quem me pede paciência. Não tenho, nasci sem, não me peçam. Atrasos me irritam e minha inexistente paciência me diz que devo ir embora, deixar tudo, xingar. Sempre faço isso. Mas como ela estava com as duas, naquele dia não fiz. Esperei.

O inverno estava chuvoso. Começou a chover de novo logo que cheguei. E isso aumentou a irritação, a sensação de estar perdendo tempo, de não ser respeitado pelas três, pois eu cheguei no horário, um pouco antes até como sempre faço, elas podiam ter chegado também se quisessem e me respeitassem. Mas ainda não eram 2. Nem estava muito frio. Pedi um café espresso (um dia me explicaram porque não é com x, mas esqueci. Táxi é com x e exemplo também e cada x tem um som diferente. Como pode? O x é um grande mistério pra mim. Ele me assusta um pouco, pois pode assumir personalidade. Um psicopata. É um cs ou um z. Pode ser a causa desconhecida da morte de milhões – um veneno x exterminou a população – ou aquilo que ninguém consegue explicar, mas parece óbvio pra todo mundo: o x da questão. Qual é o x da questão que não tem x e todo mundo finge que entendeu a explicação? Marque com x sua vítima. No x do mapa está o tesouro. Tudo que é multiplicado por x se torna enorme, incontável, sem medida. O café tinha uma espuma fina na superfície.) A xícara pequena era antiga, de um tempo em que tomar café fora de casa era tão comum como hoje. Mas meu pai nunca deixou. Havia perigos. Sempre há perigos. E chovia.

O relógio de ponteiros havia parado, talvez há dois séculos, às 2 horas, exatamente. Eu percebi isso, pois não moveu seus ponteiros desde que cheguei. Então, fiquei em dúvida: a que horas cheguei? Às 2? Pensei ter entrado aqui 13 minutos antes das 2, e como sei disso? E as três não estavam. Será que fui enganado por essa máquina morta e também estou atrasado? Será que o universo presenciou esse cataclisma cósmico: eu me atrasei? Poderia, por culpa de algum inconseqüente balconista que não deu corda no bonito relógio antigo de ponteiros, ter havido, pela primeira vez desde que o tempo foi criado, que, enganado, atrasado eu estava e estou?

A xícara (começa com x) tremeu em minha mão, sangrando um pouco de café com espuma no pires imaculado. Pousei-a com cuidado, temendo ser tomado de raiva e me vendo jogá-la na parede – não, no relógio, no balconista. As três talvez já tenham passado por aqui, talvez elas se tenham surpreendido e irritado com meu atraso e já tenham partido, já tenham tomado café em xícaras brancas e continuado a vida sem o incômodo de me esperarem por, quem sabe?, quantas horas, já estejam espalhando a conhecidos e desconhecidos que eu, inacreditável mas verdadeiramente e primeira vez, havia – quase dói só pensar nisso – perdido um compromisso por atraso. Uma atitude perversa delas, desumana, mas justificável. Eu as havia ofendido cruelmente, iludido, desperdiçado seu tempo. Tempo, tempo, tempo, o tempo parado no relógio me condena, joga na minha cara meu pecado venial, minha vileza. O café está frio. A espuma sumiu. O sangue no pires parece ter secado. Os ponteiros imóveis perpetuam meu crime.

Tão brilhante quanto o relâmpago lá fora, uma idéia surge diante de mim, quase fazendo com que eu sorria. E se eu perguntar as horas? Tremi. Minha mão conteve-se de derrubar a xícara. Coração disparou, assustado. Olhei ao redor, para me certificar de que ninguém tinha ouvido meu pensamento profano. Quem havia pensado tamanha estupidez dentro de mim? Não podia ter vindo de mim mesmo sugerir-me expor-me (som de s) aos outros, fazê-los pensar que eu pensava ser possível eu estar atrasado. Todos sabem que isso é impossível! A frágil tessitura do cosmos seria irreparavelmente abalada se as pessoas apenas aventassem a possibilidade: ele se atrasou.

O relógio continuava parado e alguém pediu um café com leite e uma coxinha (outro x). Respirei fundo, expulsando (e ele muda de som de novo. É louco!) aquele pensamento suicida, voltando à sobriedade, ao controle de tudo. Preciso pensar com clareza, com calma, sem deixar ninguém perceber o que se passa. Com a voz o mais natural possível, peça mais um café forte, sem açúcar. O balconista ouviu atentamente e sorriu. Estava tudo no lugar uma vez mais. Por enquanto.

A chuva havia parado. Só frio. Tentei ver, por aquela janela baixa com cortinas vermelhas ensebadas, se havia algum grande relógio lá fora, em algum lugar. Mas eu sabia que não havia. Um homem parou na calçada e olhou o relógio no pulso, depois olhou para mim, como se soubesse que eu precisava daquela informação. Mas não me viu e nada disse. Continuou caminhando, levando consigo seu relógio vital. A hora certa foi embora com ele. Comigo ficou a angústia.

As engrenagens precisas se tornaram o mecanismo mais importante da vida. Aquele conjunto minucioso de diâmetros, dentes, corda, eixos, distâncias agora detinha o poder de macular ou resguardar meu caráter, meu nome, minha reputação. E ele estava parado na parede, no pulso do homem que já ia longe, de posse de estranhos hostis. E talvez as três, a essa hora, já estivessem divulgando para as fofoqueiras e as colunistas sociais da cidade: cansamos de esperar, fomos embora, ele, sim, ele! atrasou-se, não apareceu, falhou.

Um homem levantou-se, colocou na cabeça o chapéu que estava sobre a mesa, ajeitou-se, pegou a bengala que encostara à cadeira. Tirou da algibeira um relógio, um grande e belo relógio pendurado ao final de uma corrente de ouro. Fitei meus olhos nele, esperançoso. Aparentemente sem nenhuma razão, o homem não o consultou. Olhou para os lados, talvez tentando recordar se já havia pago o croissant com café sem açúcar que havia comido. Inclinou-se um pouco para o lado, ajeitando a perna que parecia não ter força e apoiando-se na bengala. Trouxe o relógio à altura dos olhos. Parei de respirar. Quase gritei-lhe que dissesse em voz alta que horas eram. Ele cerrou os olhos. Parecia não enxergar direito, só com o esquerdo. E o silêncio. Tudo em silêncio. Todos em silêncio. A expressão no rosto enrugado foi primeiro de preocupação (estaria atrasado também?), mas logo se abriu num sorriso quase infantil (teria descoberto que sobrava tempo?). Encaminhou-se para a porta, relógio ainda na mão, arrastando consigo o segredo eterno do instante marcado pelos ponteiros. Ninguém o impediria?

A porta se abriu. Ele saiu. Ela entrou. Com as duas, com xale xadrez. Viram-me. “Você, hein?!, sempre pontual!” O ponteiro dos minutos do relógio da parede começou a se mover. Ele largou a bengala e, saltitante, seguiu pelo calçadão.

 

(scs, 6212)

anjos e baratas

Era um nome forte, que dizia que ela era uma mulher forte, sem medo, de enfrentar perigos e dificuldades sem tremer nem fugir. Durvalina. Talvez por ser parecido com Durval, nome de seu pai, que é nome de homem. Homem deve ser sempre forte, valente, que até vai atrás do problema só pra vencer o bicho. Sem medo.

Nada mais falso. Celina Durvalina tinha medo de tudo, principalmente de barata e de anjo. Que escândalo cada vez que vê uma barata! Aquela coisa marrom se movendo rápido deixa Celina Durvalina em pânico, louca, insana. Ela sobe na cadeira e, nem sabe porque, arranca a roupa e grita e grita até desmaiar, às vezes. Agora ela já sobe e desce da cadeira antes de desmaiar, pois uma vez caiu e foi parar no hospital. Quase morreu. Ela não entende: ela entende que a barata é pequena, quase nada perto dela, mas o monstro cheio de patas a mantém prisioneira, faz dela o que quer, ordena coisas impensáveis: gritar e arrancar a roupa.

E quando uma barata passou correndo sobre o pé de Durvalina? Por sorte o machado era muito grande e ela, muito desajeitada. Não conseguiu cortar o pé, mas gritou e arrancou a roupa e deixou o pé de molho na água quente com sabão três horas.

Baratas. São sinônimo de pânico, de desespero, de falta de ar. Muito medo de ser estrangulada por aquelas patinhas de serrote. Consegue sentir o cheiro delas e ouve seu barulhinho de correr em silêncio da luz. Por que Deus havia feito aquelas coisas que estalam e soltam gosma quando são pisadas? Nem mesmo morrem de modo decente, discreto, desnojento.

De anjo também. Muito medo. Pavor mesmo. Mas nunca viu nem sabe se existe. E morre de medo.

Celina Durvalina deveria ser forte, como exigia seu nome na certidão de nascimento registrada com data de cinco dias depois. Talvez ela fosse o outro recém-nascido do berçário. Trocas assim acontecem sempre, 32% mais no último ano. Ela não era aquele nome; então, ela não podia ser ela. Quem era, então?

Ela gostava da rima. Achava bonito ser chamada por todo ele. Celina era a parte delicada, fofinha, alguma coisa a ver com céu. Celina, sei lá. Mas, não entendia, todo mundo preferia Durvalina. Se ao menos fosse Lina. Alguns até preferiam Durva ou Durval. Ela tinha de ser forte. Ou pensavam que ela fosse. Não era. Tinha sempre muito medo. De muitas coisas.

Cada trovão um susto. A buzina de um carro fazia olhar quase atropelada para os lados. Todo latido era de um cachorro (lobo) raivoso pronto para estraçalhá-la sem oração. O choro da Viviana era sinal de que ela estava se engasgando, e lá ia ela correndo salvar a filha da comadre. E assim vivia, sempre assustada. Se perguntava por quanto tempo seu coração conseguiria suportar aquilo. “Vou morrer na próxima semana”, pensava toda semana.

Depois de limpar a cozinha, em lugar de tomar seu cafezinho bem doce ouvindo o programa das 14 horas no rádio, resolveu olhar um armário velho no quintal. Ele estava lá há muito tempo. Celina o via, mas nunca se animou de mexer nele, apesar de sua mania de limpeza. Mas agora achou que ele estava enfeiando o quintal, apesar dos vasos com flores em cima dele.

Olhou-o com calma, pensando se poderia oferecer algum perigo. De madeira, verde clarinho, desbotado e sujo, um puxador quebrado, uma chave que não impedia que fosse aberto por qualquer criança. Parecia inofensivo. Inerte.

Abriu as portas num ímpeto. A luz forte da tarde revelou umas roupas antigas, uma boneca quebrada, uma capa de revista mofada, um rato morto e baratas. Muitas. Antes de dar um salto imenso para trás, Celina Durvalina Fortes pensou ter contado um milhão delas ou muito mais.

Caiu de costas, batendo com o ombro no chão. A dor forte a impediu de começar a arrancar a roupa. A garganta se entupiu de desespero e nenhum grito pedindo ajuda saiu. O coração batia audivelmente e as baratas vinham em sua direção, como um exército implacável, abrindo suas alas de forma a cercá-la por todos os lados, com certeza para devorá-la viva. As patas de serrote marchavam com ritmo, declarando que seu fim estava próximo. E iriam roer sua roupa também.

De repente, uma luz forte, de um branco cristalino, azulada, em forma de espada, surgiu ao lado de Celina. Girou em redor dela, baixinho, rente ao chão, atingindo todas as baratas, até as da retaguarda do exército, cortando-as ao meio com um barulho metálico e de fogo. Nenhuma delas escapou. A espada, então, se ergueu sobre Celina, e ela viu uma mão robusta segurando-a e viu como se duas grandes asas, transparentes, de luz azulada também, se abrissem. E tudo sumiu. Celina estava sozinha, caída no meio do quintal, o armário com as portas abertas e nenhuma barata. Nenhum cadáver de barata. Nenhum sinal de que elas estiveram ali.

Durva é seu nome agora. Celina é passado, nome de quem tem medo de tudo. Durva não tem. Mata as baratas com rapidez, sem nojo nem dó. Até sorri ao ouvir o estalo e ver a gosma. Calou todos os lobos, xingou a comadre que não cuida direito da Viviana e canta enquanto ouve trovões. Só tem medo de anjo.

(scs, 21221011)

(fonte da foto)