as roupas e as memórias

Ele – o transitório – só se diga, por esse enquanto.
(João Guimarães Rosa)

em todos os armários espreitam
despedidas recentes em velhos álbuns
de cegas fotografias mentirosas

os vestidos acompanhavam o passado
venerando o assombro entre os olhos
– as mesmas pálpebras adormecidas de amor

anoitecida a memória: um terno cinza-mágoa
então, flores murchas, pele desbotada
marcas tão antigas na neve e no alpendre

galantes sapatos já não caminham, seguem
– almejaram o fim, a colheita, a fuga –
covardes no silêncio da esperança morta

todas as rugas na camisa puída
sem perfume ou marcas de sangue no bolso
insistem em ser nada e ódio solene

lenço jogado a um canto sem sono
devolve as lágrimas e o anel
arrependido que se findou

a gravata daquela noite inseparável
amordaça uns tímidos desatinos
com cheiro de mofo precoce

assim, todas as lembranças descartadas aguardam
em trajes de gala
o dia de acontecerem

(scs, 3414)

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