não sei se concebo
a vida
como sorriso que se foi
como aceno sem sentido
como abraço sem calor
como alma debruçada na janela
como reflexo pálido na retina
como melodia desafinada
como passos inseguros na mata
como sol forte ao meio-dia
como o encontro do primeiro encanto
como esconderijo nos braços
como beijo doce nos lábios
como suspiro de cor-amor
como fantasma de um desconhecido
como confissões a um diário surdo
como sino que chora sozinho
como corrida sem fim
como oásis que se desvanece
como onda no mar frio
como pegadas na areia molhada
como suor na face cansada
como alento pelo último olhar
como pena que mancha o papel
como carta sem destinatário
como grito na madrugada
como retrato desbotado
como cadeira de balanço que geme
como janela que foi aberta pela manhã
como despedida constante
como cochilo sem descanso
como luta sem prêmio a ganhar
como espelho que reflete nada
como estrada já trilhada
como mina de ouro a jorrar lama
como pálpebras sem repouso
como doçura de flor e pólen
como repouso após amar
como o desterro do rebelde
como a cova do covarde
como a chuva que chora toda dor
como livro sem autor
como desenho nas nuvens
como sangue que escorre dos dentes
como tolice que escapa da boca
como dilema diante da luz
como risada que rompe o velório
como cisterna sem mais água
como dente que morde a língua
como gesto que censura a palavra
como esperança que se renova
como desejo que explode e arranha
como página virada e inédita
como a espera pelo último ônibus
como a travessia do leito seco do rio
como folha seca ao vento
como o corte na pele fina da moça
como a sombra que assusta e some
como o moinho que move o nada
como a pedra chorando do riacho
como o pássaro ferido, com medo
como o menino abandonado no casarão
como o chocalho sem dono na creche
como o sossego do velho casal
como a pimenta e o mel do lar
como o quarto revolto do jovem casal
como a mão nas têmporas em dor
como relíquia rara no fundo do armário
como medalha barata de honra ao mérito
como brilhante falso de um falso amor
como esmola dada a ninguém
como ouvido surdo à frase carinhosa
como cobertura sem gosto do bolo
como desassossego ao som do despertador
como pintura rupestre no ventre da grávida
como incenso queimando à chuva
como esquina que nunca chega
como olhos vazios vendo o incêncio
como brasas iluminando a noite sem nuvens
como animal atropelado à beira da rodovia
como doença esquecida que cria anticorpos
como receita caseira pra ser feliz
como louca gritando meu nome com voz rouca
como aperto na garganta com o final triste
como o começo da escalada
como o cheiro do vento passando
como vista nublada do alto do monte
como farol que some na densa neblina
como flecha que fere o alvo sem dó
como o desânimo ao fim do dia
como o descanso ao fim da jornada
como o orvalho sobre o corpo ao relento
como ar puro que explode em risos
como alegria nos braços de muitos
como a solidão entre tantos rostos
como falar sozinho olhando-se ao espelho
como ondas na água do lago
como pássaros fugindo do inverno, sem rumo
como suspense com o abrir da porta que range
como alívio do calor sob a chuva fina
como beijo roubado com sangue e saudade
como escadas a subir ao alto do monte
como campo de tulipas sob a luz da lua
como inseto que brilha com asas estendidas
como intenso delírio na festa sem fim
como sonho feliz que se rompe na aurora
como aromas confusos de campos de flores
como algemas de veludo nos braços indolentes
como pêlos arrepiados de frio e de desejo
como canção de ninar que acalma o bicho-papão
como dor no peito que não cessa
como preguiça de tentar de novo
como neve que cai nos cabelos brancos
como ponte sobre o riacho estreito
como abismo escavado nas rochas
como sombra fria sob a árvore morta
como caminhada silenciosa de mãos dadas
como marionete sem fios no palco
como o ruído baixo no assoalho do sótão
como sujeira entre os dedos
como desespero pelo futuro incerto
como o olho frio do tubarão-branco
como o trigo dourado que espera a colheita
como a força da água que esculpe a rocha
como o sol que se vai e deixa seu dourado no lago
como a ferrugem que corrói a coroa
como a neve pura e branca que se torna lama
como a nuvem negra que esconde a cidade em sua tristeza
como o tornado que revira teus cabelos
como o meteoro riscando o céu e logo não sendo mais
como casulo dormente embalado pela brisa
como reflexo impreciso de teu olhar na água
como o azul do mar que esconde tesouros e monstros
como lobo a viver sua solidão na pradaria cinzenta
como folha que o outono murcha e desbota, ainda que bela
como estação de trem com passageiros sem destino algum
como rocha inerte pintada pelo louco poeta
como passos na areia quente do deserto
como frágil grama que está ali ao sol por um pouco
como semente que nunca caiu na terra e permanece só
como cabana abandonada em uma montanha verdejante
como moça que espera na janela o homem que viu em sonhos
como água que maltrata a rocha que maltrata a água
como oceano que se lança da Terra plana em cascata sem fim
como aurora que se debruça no parapeito do teu olho
como peixe que busca ar no lago poluído
como navio que afunda tão perto do porto
como maçã mordida escurecendo abandonada no prato
como uivo para uma lua que se recusa a sorrir
como sorriso constante aos desconhecidos que passam
como joelho machucado que finge que não sangra
como planta solitária que abriga pássaros e produz um fruto.
não.
a vida não é
isso.
(scs, 23411)