a janela

janela

a janela me espia
com seus olhos de vidro
me invade, investiga, intimida
é transparente
vê tudo em mim
minha vergonha, meus segredos, meus fluidos

os olhos despudorados da janela
de vidro
me conhecem, me atravessam
dizem que sou o que não sei de mim
e olham sem parar
enrubesço
ameaço
corro rua abaixo
esbarro na vizinha gorda
e os olhos continuam me olhando
olhando, olhando, olhando
cada vez mais dentro de mim
minhas células
meus pensamentos perversos ocultos
mortes e cobiças e pêlos e fugas e ódios

e os vítreos vívidos volumosos olhos
de janela
contam pra toda rua
pro bairro e
pro mundo todo
o que viu vasculhando em mim
e ri com seu riso de veneziana
de mim
de meus íntimos guardados
          lacrados
          amaldiçoados
          feiosos
          lindos
sonhos e pecados
e sem pudor
sem dó
sem clemência
sem vergonha
grita e conta e canta e ri e declama e vomita

não posso mais sair à rua
sou visto e rido
sou visto e apontado e apedrejado
até os bêbados riem de mim
          e as prostitutas tão castas
          e os fantasmas do cemitério
          e os baderneiros na cadeia
          e as velhas carolas de duvidável virgindade
          e os cândidos estupradores
          e os padres podres
          e as inocentes crianças
todos riem e xingam e batem e fecham os olhos e jogam “ai, meu Deus!” aos céus
quando passo
não querem me ver
não querem se ver em mim
nas coisas que os olhos vidrosos contaram

sou o que todos são
mas sou o único que sou

e a maldita nojenta vidrante falosa linguarenta janela
realizada
vai dormir sossegada

amanhece despedaçada
seu sangue cacovidrado espalhado pela calçada
o tijolo
arma do crime
fez bem seu trabalho
jaz sorridente na alma da criminosa delatora

todos os meus segredos voltam para dentro de mim

(mc, 25109)

(foto: fonte desconhecida)

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