A estranha melodia


– Essa mesma! – gritou Gaspar, quase engasgando-se ao tentar rir ao mesmo tempo.
– Pois é – continuou Lúcio, colocando o violão a seu lado, na grama. – A banda tava tocando essa música horrível, e o Gaspar nem viu que tinha esbarrado naquele cara enorme atrás dele, do tamanho de um jogador de futebol americano com uniforme! Eu senti que a coisa ia resultar em morte do magrela aí –, apontando para o franzino amigo –; então, puxei o Gaspar, falei bem alto que a vovó Nardina (nem sei de onde tirei esse nome…) tava preocupada, procurando por ele, que queria se despedir dele antes de morrer…
– Ah! Disso eu lembro! Eu achei que eu tava bêbado, pois não entendi patavina do que aquele estranho tava falando ao mesmo tempo em que ia me puxando pelo braço, com pressa… Até que, longe do assassino do baile, ele me explicou tudo.
– E foi assim que a gente se conheceu! – concluiu Lúcio, abrindo os braços em direção aos amigos.
Surdo, Gaspar e Teco aplaudiram e riram, imaginando a cena.
– Cara, isso faz uns cinco anos, né? Meus pais tinham se mudado há pouco pra Ausência…
– Sabe –, interrompeu Surdo, meio sonolento –, meu pai fico muito bravo quando eu chamo São Gervásio dos Ausentes de Ausência ou chamo seus nobres moradores de ausentes. Ele sempre fala, com aquela voz de locutor de rádio antigo dele: “O gentílico correto é ausentianos; ou, como preferem os mais tradicionais ainda, são-gervasense-ausentianos”.
– Minha avó é a mesma coisa – acrescentou Teco. – Parece uma ofensa pessoal falar de Ausência ou de ausentes. É como se mexesse com alguma coisa… Sei lá… com a alma dela, com a alma do pessoal dessa cidade.
– É uma cidade muito estranha mesmo – concluiu Lúcio, olhando para trás.

Os quatro amigos estavam no Morro da Gruta, acampando. Lá abaixo, estava São Gervásio dos Ausentes, cidadezinha com uns dez mil habitantes, espalhada por uma grande área em torno do “centro”: uma única avenida cortava a cidade, no meio da qual havia a Paróquia com o mesmo nome da cidade, numa praça de árvores mal cuidadas. Nessa avenida estava o decrépito cinema, a única agência bancária, o supermercado, a agência do correio, a funerária. Quase ao final, a rodoviária, que não passava de um guichê no fundo de um bar, uma placa na calçada e um ônibus velho ali parado. No final da avenida, o Centro de Tradições Gaúchas, grande orgulho da cidade. Nas ruas laterais, casas, pequenos comércios, empresinhas de fundo de quintal. Espalhando-se para o lado sul da cidade, havia sua região rural, além de áreas verdes no meio das quais, diziam, havia casa de gente muito rica, que vinha se refugiar anonimamente ali para fugir do barulho e do assédio. Diante do lago, que parecia mais um pântano, estava o antigo hotel Jóia da Mata, de mais de cem anos, com seus três andares em um prédio que já havia sido bonito e branco.

Os quatro amigos olharam em silêncio para as luzes dispersas lá embaixo. Talvez estivessem todos pensando: “Como eu vim parar aqui? E por que eu não saio desse fim de mundo?”

Lúcio, Surdo (apelido de Márcio) e Teco (apelido de Luís Roberto) eram filhos, netos e bisnetos de ausentes. Gaspar (apelido de César) havia nascido em Ausência, mas seus pais se mudaram para Porto Alegre quando ele tinha menos de um ano. Quando o pai ficou desempregado, decidiram voltar, pois pelo menos ali tinham uma casa própria, herança deixado pelos avós maternos ao único neto. Os três primeiros conhecem-se desde a infância; Gaspar foi recebido no grupo depois do incidente no Baile da Rainha da Primavera.

– Falando em cidade estranha, vocês perceberam uma coisa estranha? – perguntou Teco, olhando ao redor para se certificar do que ia falar.
– O quê?
– Estamos sozinhos há dois dias aqui no Morro da Gruta. Não apareceu ninguém. Nem os maconheiros de Caravela e de Campos Verdes (eles ficam irados quando a gente chama a cidadezinha deles de Capinzal!) que costumam vir pra cá, nem os casais de namorados lá da paróquia que vêm aqui pra fazer coisas abomináveis, como diz o padre Venceslau… Ninguém!
Os quatro giraram em torno de si mesmos, olhando com atenção, como se pudessem estar enganados. De fato, não havia ninguém. Desde o dia anterior, em que haviam chegado cedo pela manhã, ninguém aparecera ali, o que era incomum. O Morro da Gruta era o único ponto turístico da cidade, se é que podia ser chamado assim. Havia uma precária estrutura para acampamento, uma plataforma para salto de asa delta e uma vasta visão, que permitia aos turistas enxergarem grande extensão de matas, montes, rios e toda a cidade.
– Ninguém mesmo! – confirmou Surdo.
– Tudo em Ausência é muito estranho – sentenciou Lúcio. – Mas deixa pra lá. Vamos dormir, pois amanhã temos de descer o morro e voltar à rotina. O dia 5 nos espera cheio de alegria e novidades!
– É… Eu preciso mesmo – disse Teco, levantando-se meio trôpego. – Acho que me excedi um pouco na cerveja.
Teco não costumava se embebedar. Na verdade, nenhum deles bebia, de fato. Uma ou outra cerveja nesses encontros; Teco é que se empolgava um pouco. Mas ele não precisava muito para começar a ficar tonto ou a enrolar a língua. E nunca fazia isso longe dos amigos, que cuidavam para que ele não se metesse em confusão.
Os quatro começaram a organizar tudo o que era possível para, no outro dia, levantarem acampamento bem cedo. Como vieram a pé, tinham trazido o mínimo necessário: uma grande mochila para cada um com tudo de que precisaram. Dois dias à base de atum e miojo não matava ninguém. Guardaram, limparam, banharam-se no chuveiro frio que havia ali no imundo banheiro público (e, como sempre, Lúcio foi o que fez mais alarde: ele era incapaz de tomar banho frio sem gritar…) e montaram as quatro pequenas barracas individuais.
– Antes de dormir, a selfie da última noite! – Lúcio gritou, já preparando o celular e puxando os amigos para si.
– Claro, não podia faltar, né? O rei da selfie! – comentou, com alegre ironia, Surdo.
Lúcio sempre saia bem naquelas fotos. Com seus dentes perfeitos (os amigos zombavam, dizendo que ela tinha uns 60 dentes na boca, tão brancos e uniformes eram) e um sorriso vasto, cheio de alegria, parecia roubar toda a cena na foto com os demais. Mas a contrariedade dos demais era fingida: faziam questão de comemorar e registrar sua amizade.
Feita a foto, compartilhada entre todos (claro que Lúcio saiu com aquele sorrisão enorme de sempre!), foi cada um para sua barraca.

Aquela noite de janeiro estava agradável. Sem calor excessivo, com uma brisa ocasional para refrescar, permitiu a todos dormirem profundamente. Menos Lúcio.
Seu sono foi inquieto, com um longo e único sonho. O sonho não era ruim, mas… estranho. Estranhamente vívido – e era raro Lúcio sonhar. Havia algo… uma busca… um desconhecimento… uma angústia que parecia precisar ser dividida… ao mesmo tempo, um consolo… um afago que parecia tocar diretamente o coração… um frio incômodo que se tornava um terno acalento… e aqueles olhos… os olhos… Havia algo no sonho que Lúcio sabia ser sonho, mas também alguém… alguém que não era sonho, embora ali estivesse. Os olhos…

Surdo, Gaspar e Teco foram despertados quase ao mesmo tempo por uma estranha melodia, cantada por uma voz afinadíssima. A melodia não era exatamente entoada; era mais gemida, talvez. Como se uma dor ou uma angústia se manifestasse em forma de música. Saíram das barracas e, mesmo sem falar, pareciam todos compreender que se perguntavam a mesma coisa: que é isso? A melodia vinha da barraca de Lúcio.
Abrindo o zíper da barraca do amigo com cuidado, viram Lúcio, ainda dormindo, cantarolando a melancólica melodia.
– Como? Essa voz não é dele! – cochichou Gaspar, surpreso.
Lúcio brincava dizendo que este era seu único defeito: não tinha voz afinada. Gostava de cantar, mas tinha consciência de que não conseguia segurar a afinação, cantava com voz meio anasalada, desafinava feio na mudança de notas muito distantes entre si. Mas agora, de seus lábios, de sua garganta, saia aquele… som tão perfeito.
Surdo, sempre muito prático, sacudiu o amigo, enquanto o chamava pelo nome. Lúcio abriu os olhos, mas não parecia estar exatamente acordado. Olhava para os amigos de modo vazio, sem reação, como se não os reconhecesse, embora não se houvesse assustado ao vê-los.
– Lúcio, cê tá bem? Fala com a gente, cara! – sacudia-o com algum vigor Gaspar.
– Ah… Eu tô… bem, sim. Tô bem. Eu… eu… tava… sonhando. Não, não era sonho, mas… era sonho. Eu já… um dia, não lembro bem… encontrei… ela mesma. Mas eu achava… que era a lembrança… só uma lembrança… de um sonho. No sonho… ela disse que era real… um sonho… Uma música… ela cantou a música… pra mim… Que voz linda!… Ela… Azul… Os cabelos bem pretos… assim… cacheados… bem pretos… a estrada sem fim… enquanto cantava… Azul… os olhos… olhos… orientais… tristes… Como ajudar? A música dizia… outros também… eu não conseguia, longe dela… mas eu via os olhos… o vento cantava… a melodia agitava os cabelos… a estrada terminava… não chegava ao fim… Onde ela foi?… como eram pretos, com um brilho de… Lua… Azul… e melodia… ela cantava, era sua… seu pedido… seu… coração… Azul…
As palavras eram ditas no mesmo tom apático, sonolento, intervaladas por silêncios, embora o movimento das mãos e dos olhos indicasse uma forte emoção por trás delas. E Lúcio continuava a falar, quase as mesmas coisas: sonho, melodia, olhos, cabelos, Azul…
Seus amigos se olharam assustados, sem nada compreender.
Surdo, uma vez mais, tomou a iniciativa:
– Vamos levar ele pra tomar um banho frio. Ele deve ter batido com a cabeça, foi picado por algum bicho venenoso… Sei lá! Alguma coisa assim. O banho frio vai ajudar o Lúcio a despertar.
Com algum esforço, os três conseguiram tirar Lúcio da barraca e enfiá-lo debaixo do chuveiro. O choque da água não teve resultado algum. Embora a manhã estivesse fria, Lúcio não parecia sentir a água quase congelada que lhe caía sobre o corpo, bem diferente do jovem da noite anterior e de sempre. Isso foi suficiente para convencer os amigos que algo muito ruim lhe havia convencido.
– Gaspar, liga pro pai do Lúcio; não assusta muito o velho, mas diz que ele precisa vir buscar o filho dele. Teco, você me ajuda a secar o Lúcio e a colocar roupa nele – ordenou Surdo.

* * *

Seu Durvalino teve de se aposentar por conta de um AVC que lhe deixou com um lado do corpo com muitas limitações. Assim, teve de abandonar, pelo menos profissionalmente, aquilo que amava fazer: jardinagem. Todas as casas de luxo de São Gervásio dos Ausentes (incluindo algumas daquelas que ninguém via, escondidas nas áreas verdes. Durvalino nunca falava delas.) e das cidades próximas tiveram o jardim elaborado, plantado e cuidado por Durval das Flores, nome pelo qual ficou conhecido. Agora, pode, com muito esforço, cuidar de uns poucos canteiros em frente a sua casa e dar alguma manutenção a dois ou três clientes que fazem questão de seus serviços.
Durvalino casou com 35 anos, pois estava feliz solteiro, entregue à profissão. Até que conheceu Zélia num Baile da Rainha da Primavera. Ela também era apaixonada por plantas. Não tiveram filhos, e Zélia morreu cinco anos depois, vítima de uma estranha doença, que não foi bem diagnosticada, embora no atestado de óbito conste “câncer no pâncreas”. Dr. Noel, médico respeitado da cidade, não parecia muito convencido quando deu essa informação a Durvalino.
Seis anos depois, ele casou de novo, com Eloísa, filha única que acompanhava a idosa mãe que se mudara para a cidade. No segundo ano do casamento deles, nasceu Lúcio. Dona Elô quase morreu no parto. Isso fez com que o casal se apegasse ainda mais ao filho único, filho da velhice do casal. No ano seguinte, Durval sofreu o AVC.

Naquela manhã, ele deixou d. Elô dormir um pouco mais. Eles costumavam levantar-se no mesmo horário, bem cedo, sete dias por semana, fazerem suas orações matinais juntos; depois tomavam café (o pãezinho de banana era presença obrigatória) e saíam para caminhar por uma hora. Apesar das limitações, ambos procuravam manter-se fisicamente ativos. “Queremos partir saudáveis”, é o que explicavam. Mas naquela manhã foi diferente. Durvalino saiu silenciosamente do quarto. Permaneceu silenciosamente na sala. Olhava silenciosamente, mas inquieto, para os lados, como se por alguma parede ou janela lhe viesse uma notícia, uma explicação… Algo parecia lhe avisar que…
– Durval das Flores – disse, como de costume, ao telefone, ao qual atendeu logo que tocou, arrancando-o de seus pensamentos desconexos e aflitos.
– Seu Durvalino, bom dia! Desculpa ligar tão cedo. Ah, aqui é o Gaspar, amigo do Lúcio.
– Aconteceu alguma coisa com meu filho?
– É o seguinte… bem, a gente não sabe direito o que aconteceu com ele. Quando ele foi dormir, tava tudo bem. Mas ele acordou de manhã… muito estranho. Cantando com uma… É… falando de um sonho esquisito com uma música… e uma moça… e ficava repetindo…
– Azul?
– Como… como o sr. sabe? Bem, é, sim, é uma das coisas que ele fica repetindo. Ele tá do mesmo jeito ainda, falando nada com nada. A gente acha que o sr. precisa vir buscar ele.
– Vou agora mesmo ali no ponto de táxi pedir pro seu Rúben ir buscá-lo. Vocês estão no Morro da Gruta, certo?
– Isso mesmo.

Desligou o antigo telefone de baquelite sem nem mesmo se despedir do jovem. “Azul”, ele pensava, enquanto se encaminhava para a porta, colocando o boné que o acompanhava há muitos anos. “De novo…”.

* * *

– Não sei! – explicou Rúben, à pergunta da esposa.
– Meu velho, seu carro tava funcionando direitinho faz pouquinho tempo, né? Você me levou ali na casa da comadre.
– Pois é, minha velha. Não sei o que acontece. Ele não pega. Simplesmente não pega. Nem no tranco. E não tem nenhuma luz estranha acesa no painel! E eu sei que tá tudo em ordem com ele…
Depois de tentar dar a partida mais uma vez, deu um murro no volante e exclamou, desanimado:
– Como é que eu vou trabalhar hoje? O ponto vai ficar sem táxi!

* * *

Tão rapidamente quanto podia, Durvalino chegou ao ponto de táxi, que ficava perto de sua casa. Ali revezavam-se os três motoristas da cidade, conhecidos de todos. Alguns ausentianos diziam que eles trabalhavam no ramo desde o tempo das bigas romanas… Segundo a escala, que todos os cidadãos conheciam de cor, era o primeiro horário do dia, vez de Rúben estar no ponto. Mas seu vistoso carro azul não estava lá. Durvalino não reconheceu o carro branco que estava parado diante do abrigo.
Antes que ele chegasse ao ponto, da surrada poltrona estofada em que os motoristas descansavam levantou-se um homem – parecia saber que Durvalino estava vindo. Era um senhor negro, alto, aparentando uns 60 anos, cabelo acinzentado, bigode branco, de sorriso cortês. Estacionado, um carro branco, muito branco.
– Precisa de táxi, sr. Durvalino? – perguntou, inclinando-se levemente e indicando seu carro.
O homem tinha uma voz muito grave, solene, profunda.
– Desculpe, senhor…
– Luzano, senhor. Chamo-me Luzano.
– Eu achei que fosse horário do Rúben…
– Pois é… No entanto…
– Eu não lembro de ter visto o senhor aqui antes. É sempre o Rúben ou o Pardal ou o Salustiano… E como você sabe meu nome?
– Ah, sim! – Abriu um largo sorriso. – Numa cidade pequena, é difícil a gente não conhecer todo mundo, especialmente os moradores mais antigos.
Olhando fixamente nos olhos de Durvalino, com um sorriso um pouco mais contido, disse:
– Estou aqui para ajudá-lo nessa aflição.
Houve um momento de completo silêncio. Luzano mantinha-se absolutamente na mesma posição, olhando nos olhos de Durvalino que, sem mesmo dar-se conta, disse:
– O senhor sabe… eu tô preocupado com meu filho, Lúcio. Aconteceu… alguma coisa… é… estranha com ele. Eu preciso ir buscá-lo, lá no Morro da Gruta. O senhor… o senhor sabe chegar lá?
– Perfeitamente, sr. Durvalino. Mas permita-me sugerir-lhe que volte para casa e prepare as coisas – dizia enquanto se encaminhava para o assento do motorista no carro –. Seu filho vai precisar de cuidados especiais. E d. Elô pode ficar desnecessariamente preocupada ao descobrir que o senhor não está em casa. Em vinte minutos estou lá; então, no máximo em uma hora eu deixo o menino em sua casa. Não se preocupe.
Terminou de falar já dando partida no carro, que seguiu pela avenida.
Durvalino permaneceu ainda alguns instantes observando o veículo que se afastava, sem compreender o que havia ocorrido ali. Sentia que… sim, que tinha feito a coisa certa. E precisava voltar a fim de preparar a casa para receber o filho. E tinha de achar as palavras certas para explicar tudo para sua amada Eloísa. Ela era uma mãe muito apegada.

* * *

– Carro branco, seu Luzano… Entendi. Deve chegar nuns dez ou quinze minutos. Lúcio vai estar pronto.
Gaspar desligou o celular e avisou os amigos. Todos respiraram aliviados, pois não sabiam mais o que fazer e o que pensar.
Lúcio estava do mesmo jeito. Olhava para o nada, como se não visse ninguém, de vez em quando começava a entoar a melodia do sonho (mas não mais com a voz afinada da manhã), depois repetia aquelas palavras desconexas: sonho, cabelos, olhos, Azul, melodia… entremeadas com o que pareciam ser partes do tal sonho. Mas nada fazia sentido.
Seus amigos já haviam recolhido todas as coisas do acampamento. Sentados em torno de Lúcio, olhavam-se, esperando cada um deles que o outro tivesse uma explicação, uma solução, uma idéia qualquer para aquilo. Já tinham tentado contar piadas, colocar o violão nas mãos de Lúcio para que ele tocasse, estimularam-no a pular, fizeram muitas perguntas. Nenhuma reação. Ele não tinha febre, suas pupilas respondiam à luz, até comeu um pouco do lanche que lhe puseram na boca. Mas estava cada vez mais apático, sem reação. Era como se não estivesse ali.
A espera pelo táxi gerava nelas uma enorme aflição. Não sabiam o que fazer. Não sabiam o que pensar. Tinham a impressão de que a vida do amigo estava por um fio, como se sua apatia fosse engoli-lo. Cada um deles pensava ser culpado daquilo, por uma razão inexplicável qualquer. Lúcio foi quem teve a idéia de acamparem, mas… por que aceitaram?
– Tô vendo muita poeira na estrada do Morro. Um carro tá chegando! – gritou Surdo.
– Finalmente!

Teco, que ainda se sentia um tanto sonolento (ele demorava para se recuperar do exagero na cerveja) ficou um pouco mais para trás, com as mochilas, enquanto Gaspar e Surdo amparavam Lúcio e o levavam em direção ao carro. Por estar com a mente ainda embaralhada, Teco não sabia se estava vendo direito, mas havia alguma coisa estranha no carro. Ele levou alguns instantes para compreender o que era: o carro estava imaculadamente branco. E a parte final da estrada que dá acesso ao Morro da Gruta é sem pavimentação, de terra vermelha. Não chovia há uma semana, o que provocou a grande poeira que Surdo tinha visto. Era impossível para um carro branco passar por ali e manter-se branco.
“Coisa da minha cabeça. Não tô vendo nada direito”, disse para si mesmo, enquanto puxava duas mochilas em cada mão.
Ao aproximar-se do carro, viu que seus amigos se preparavam para colocar Lúcio no banco de trás. E teve uma idéia repentina.
– Caras, vamos tentar só mais uma coisa. Parece bobeira, mas a gente sabe que é uma coisa que mexe com o Lúcio. Uma selfie! – ia falando, enquanto já tirava o celular do bolso e gesticulava para os amigos se ajeitarem. – O senhor também, seu motorista.
Os demais, talvez cansados pelas tentativas infrutíferas anteriores, acharam que não custava tentar aquela sugestão sem pé nem cabeça. Quem sabe?
O resultado, no entanto, foi o mesmo: Lúcio, meio encostado no sr. Luzano, seguro pelos amigos, não mudou em nada seu ar vazio, apático, sem vida.
– Tá, cara. Valeu pela tentativa. Coloca as mochilas no porta-mala… Só cabem três. Eu levo a outra – ordenou o gerencial Surdo. – Teco, entra aí. Você tá meio grogue ainda. Faz companhia pro Lúcio. Eu e o Gaspar vamos a pé. Meu celular tá quase morrendo. Só liga, então, quando chegarem na casa do Lúcio.
– O meu tá do mesmo jeito – acrescentou Gaspar. E, voltando-se ao motorista, que já havia ligado o carro, pediu-lhe:
– Seu… Luzano (é isso, né?), por favor, leve com carinho esse cara aí. Nós gostamos muito dele.
Depois de olhar por um instante diretamente nos olhos de Gaspar, o simpático motorista, sorrindo, disse com sua profundíssima voz:
– Tenha plena certeza, meu jovem, de que ele está em boas mãos. Em muito boas mãos. Até mais.

* * *

– Por que você não foi junto? Como é que você confiou naqueles avoados dos amigos do Lúcio? Você sabe que o apelido de um deles é Surdo? Surdo! Onde já se viu isso? O que significa isso? Surdo? Ele é surdo, por acaso! Ainda por cima, é um desrespeito com quem é surdo de verdade… E quem é esse motorista? Surgiu de onde essa criatura? Você nem sabe o nome dele! Luzano? Isso não é nome de gente, Durval. Vai ver é até inventado! Durval, por que você não foi junto, Durval? Você que é tão atilado pras coisas, Durvalzinho! E meu filho, meu filhinho, meu bebê grande…
Dona Elô caminhava agitada de um lado para o outro da sala, inconsolável. E a falta de resposta do marido a exasperava ainda mais.
– O que houve com você, Durvalzinho? Você nunca foi assim, sem ação! O que houve, Durval? Por que você não foi junto, Durval?
E no íntimo de Durvalino, a única resposta que ele dava para a mesmíssima pergunta que se fazia era: “Não sei. Não sei…”.

* * *

– O que você fez?
– Não sei, minha velha. Não sei. Eu só… sei lá: liguei o carro. A mesma coisa que eu já…
– Tá bom, tá bom. Não interessa. Amanhã você leva essa encrenca lá na oficina do Santana. Agora, corre pro ponto que você já tá bem atrasado. E não esquece que a gente tem de visitar sua mãe hoje à tarde.

* * *

Teco olhou para Lúcio, que não demonstrava nenhuma alteração. Pensou em puxar conversa com o motorista, mas achou que poderia distraí-lo da perigosa estradinha que levava até o centro de Ausência. Além disso, o balanço do carro e o sono o venceram. Dando uma última olhada para Lúcio, para se certificar de que nada havia mudado, dormiu profundamente.
Ainda dormindo, começou a ouvir uma melodia. Aquela melodia. Agora cantada por uma voz feminina. Límpida, suave, cheia de ternura que não escondia tristeza, uma voz que não parecia ser… A mesma melodia estranha.
Teco fez um esforço enorme para abrir os olhos. Não sabia ao certo se já estava acordado ou se tudo não passava de sonho, influenciado por tudo o que Lúcio havia repetido dezenas de vezes. Mas, quando sentiu a mão de Lúcio tocá-lo, despertou repentinamente, olhos arregalados, coração disparado. Lúcio, a seu lado, sorria para ele com aquele seu conhecido sorriso. E apontava para a frente:
– Olha!
No lugar do motorista estava uma mulher. De cabelos muito, muito pretos, cacheados e brilhantes, de olhos orientais. Ela se virou rapidamente para Teco e sorriu.
– Azul –, disse Lúcio.

* * *

– A essa hora, o Lúcio deve estar chegando em casa. Logo o Teco ou o velho liga pra gente avisando. Imagino que seu Durval deve ter chamado o médico lá de confiança deles – comentou Gaspar, conferindo o relógio.
O sol já estava bem forte. Soprada pelo vento, a poeira vermelha da estrada cheia de curvas se apegava ao suor dos dois. Eles não haviam conversado muito até aquele momento. Parece que todas as sugestões e acusações que lhes passaram pela cabeça haviam drenado sua comum disposição para falar.
– O que terá acontecido com nosso amigo?
– Espero que o médico descubra. Que coisa mais estranha, né? E… acho que nem lembrei de contar. Quando liguei pro pai do Lúcio, ele mesmo falou…
– Olha ali! – gritou Surdo! – Não é o Teco? Ali, do lado da estrada, com as mochilas? É ele mesmo!
Enquanto corriam até o amigo, o celular de Gaspar tocou. Era seu Durvalino.
– Como assim ele não chegou ainda? – perguntou Gaspar, sem compreender direito o que ouvia.
Surdo chegou a Teco que, sentado sobre as mochilas, olhava para o celular, com o mesmo olhar vazio de Lúcio. Na tela do celular, a última selfie; nela, Lúcio aparecia sorrindo encostado a uma mulher. De cabelos muito, muito pretos, cacheados e brilhantes, de olhos orientais. Teco balbuciava uma melodia. A estranha melodia.

(scs 2421)

(Foto de Rachel Claire no Pexels)

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