E a linda menininha?

Hamilton é vizinho de Charles. Charles não gosta de Hamilton. Não gosta. Não gosta de nada que Hamilton faça, escolha, diga, vista. Quando Hamilton fez uma reforma no apartamento, Charles disse que ele iria destruir o prédio. Quando Hamilton distribuiu cestas básicas, Charles disse que ele estava envenenando os pobres. Quando Hamilton elogiou o trabalho da diarista, Charles disse que ele a estava seduzindo. Quando Hamilton qualquer coisa, Charles não gosta. Não gosta por vir de Hamilton.

Charles tem uma amiga, Deysiane, que ficou viúva muito cedo, com uma filha pequena. Linda. Deysiane é amiga também de Hamilton. Charles gosta muito da Deysiane e da linda filhinha dela, mas não admite que ela seja amiga de Hamilton. É o que ele mais odeia em Deysiane, de quem gosta muito. Ele leva presentes para a linda menininha, mas sempre diz pra ela não mostrar pro Hamilton. “Ele pode até roubar”, pensava Charles, odiando Hamilton uma vez mais. “Eu tento avisar, eu tento.”

Hamilton tem um grande amigo, Jean. (Logo, Charles odeia Jean.) Jean é equilibrista. Renomado. Muito ousado no que faz, mas também muito cuidadoso. E muito dadivoso. Tinha fama, mas não tinha fortuna.

Um dia, Jean decidiu fazer uma grande exibição: iria atravessar a distância entre dois prédios em cima de um cabo de aço. E carregando uma pessoa nas costas. E de olhos vendados. Hamilton aprovou e ajudou a patrocinar o evento. Charles odiou. Se Hamilton apóia, com certeza não presta, tem alguma segunda intenção por trás. E ele, Charles, ainda conseguiria provar que estava certo em sua opinião sobre Hamilton.

No dia da grande apresentação, lá estavam centenas de pessoas. Embora ela acontecesse em espaço aberto, Hamilton sugeriu a Jean que pedisse um quilo de alimento não perecível para quem fosse assistir. Sugestão aceita. As pessoas concordaram. Centenas de quilos de alimentos foram reunidos para uma entidade assistencial que cuidava de idosos, incluindo a avó de Charles. Charles odiou. Disse que era demagogia. Foi assistir, mas não doou nada. Ele também nunca visitou a avó naquela casa de cuidados.

Jean, na beira de um prédio, avisou que começaria a travessia. E que levaria às costas uma criança. Um grande “Ooooooooooh!” se ouviu na multidão. Charles pensou: “Irresponsável!” Jean anunciou que levaria Marina, filha de sua amiga Deysiane. A multidão aplaudiu. Charles pensou: “Essa Deysiane é uma irresponsável. Colocar a filha nas mãos desse maluco. Cada coisa…!”

Jean começou sua apresentação. Multidão em silêncio. Hamilton atento. Charles pensava: “Esse irresponsável vai cair lá de cima. Aí, todo mundo vai ficar sabendo quem ele é. E vai pegar os alimentos de volta. E esse ridículo do Hamilton vai ser desmascarado. Tudo mundo vai ver que eu sempre tive razão. Esse Hamilton é um picareta!”

Jean avançava, lentamente. A menina quietinha a suas costas, tranqüila, tudo observando. Charles torcendo para estar certo.

Quando faltavam dez metros para chegar ao outro prédio, um forte vento sacudiu o cabo de aço. A multidão se afligiu. Jean parecia perder o equilíbrio. E então…

 

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