em pó

era madrugada
de um sabor sem esperança nem remorsos
eu, linda, olhava pela janela esperando
teu aviso que nunca vinha

ainda

uma tensa calma
se agitava nos meus cabelos, translúcida,
nas veias e antevendo aquele tempo
que eram memórias e sonhos

insones

convulsionada em ardor
escondi o rosto do vento surdo
recusei meu nome e te quis solto,
inquieto borrão de saudade

amarga

a cortina escura
encobriu o nada que eu via,
linda, o canto roubado dos lábios
e desfiz-me em pó e em solidão

contigo

(scs, 11514)

três violões

a Ricardo Ordovás Lopes

Eu os tenho.

No primeiro toco saudades inconclusas
com gosto de limonada, em volta da mesa
de ingênuas descobertas e tempo perdido,
um tempo de tão antes
que parece nunca ter sido
e ainda é.
Dissonantes notas telefônicas
de tempero quase infantil,
tolos códigos que a amizade exigia,
dos outros ao redor tão distintos,
que o tempo buscou apagar,
embalaram tanta imaginação na vida inspirada
e a vida mesmo levou pra longe.

Com o segundo, desafinado, canto da trilha solitária
descrita nas páginas infantis do diário
que fui fazendo ao caminhar
sem querer deixar marcas,
dores e cartilhas e buscas,
me antevendo em rostos e muros,
escondido no vento da longa jornada
abraçado pela noite em que a solidão
cantarolava rudes melodias
nascidas para serem selvagens: havia lugar para o amor!
amansadas pela rotina
e outros tantos desejos aninhados num coração pequenamente vasto,
à sombra de um amanhã feliz que eu mesmo fazia –
e já era de novo a hora do almoço.

O terceiro está silencioso.
Como eu.

Eu os tenho.
Não.
Eles a mim.

(scs, 23114)