um gato desconhecido

e já entrou em casa
gritando que estava com fome a tele
visão ligada mas ninguém assistindo
era antiga de tubo a novela das seis
um sofá surrado herança daquela tia bolivi
ana que nunca encontrava o jantar pronto e nem
faço questão de coisa muito sofisticada
de um tecido floral a cortina da sala era
mais larga do que o necessário sossego que não havia
ninguém em casa pra ouvi-lo coisa tão
estranha onde tá todo mundo? nem me avisaram na
mesa do centro uma xícara de café suja de batom
vermelho ninguém aqui usa isso! quem esteve
aqui ao lado do jardim há uma pequena horta
os alfaces são dali porém havia um perfume no ar
de… não daquela marca antiga que minha mãe
pensei nela outro dia por que não me disseram que? iam
sair o barulho do caminhão do lixo sempre pontual nas
quartas uma echarpe lilás ao pé bonita da escada enrolada como uma
cobra o capítulo já terminando e as cenas do próximo
horário de verão tudo claro por que todas as
luzes? daqui de baixo estão acesas eu
que pago lá fora crianças brincavam com água e gri
tavam como se fossem felizes um dia vão saber
cada minuto mais esquisito isso vou ligar pra
passos no andar de cima pesados lentos
vindo em direção à escada junto com o perfume e
o comercial do novo absorvente antes do noticioso
pareciam arrastar alguma coisa pisando na lama ou
barulho de coisa gosmenta uma respiração aba
fada o gari derrubou um latão as janelas estavam
abertas os passos largaram algum objeto som surdo no chão
a madeira era uma casa antiga mas firme onde estão? no bairro
residencial todos conhecidos um vento entrou pela janela e a
cortina imensa se mexeu uma mancha vermelha não tava ali antes
os passos pararam o grito ficou entalado na
gargan a campainha tocou como se
estivesse gritando era a vizinha da casa em susto
frente perguntando se eu tinha vista um gato
desconhecido rondando porque um canarinho de cri
ação dela usava um vestido lilás tinha desaparecido
e batom vermelho borrado com bafo de café

amor

casaram de papel passado
vestido amassado
terno emprestado
padrinho enciumado
sogro endividado
natal adiado
irmão desconfiado
padre apressado
bolo confeitado
patê salgado
retrato antiquado
suco arrotado
baile agitado
avô desdentado
coração dilacerado
primo desgrenhado
choro encomendado
ridículo filmado

passeio parcelado
vento inesperado
hotel meio acabado
quarto mofado

lençóis manchados
beijos apaixonados
abraços demorados
amor desfrutado
sussurros gritados
risos cortados
corpos emaranhados
demorado, demorado
sono relaxado

dia ensolarado
casal no quarto trancado
o amor, tão sonhado,
no terno amassado,
no lençol amassado,
no beijo manchado,
no abraço inesperado,
no mundo lá fora mofado,
meio acabado,

e o que importava
é que nada mais importava

(s, 27912)

Chegaram os livros!

Se você freqüenta o blogue, sabe que meu poema onde ficou entre os cem melhores do concurso TOC140, agora publicados em livro. A notícia completa está aqui. Pois o livro chegou!

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Este livro é único! É o único exemplar que eu tenho e não será feita nova edição dele. Raridade 😉

Outro que chegou é O Livro II das Aldravias, primeira edição bilíngüe português-espanhol para a qual os autores foram especialmente convidados. Sou um deles! Em abril, esse livro será lançado em Portugal e na Espanha. Sua tiragem é pequena, por tratar-se de obra de divulgação. Então, há poucos exemplares à disposição. Se tiver interesse em adquirir, entre em contato.

Se você quer saber o que são aldravias, clique aqui.

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um menino e outros

do telhado
um menino sentado vejo outros
meninos sentados em tantos
telhados
das poucas tantas casas do mundo
olhando
o horizonte sem esperança nos sonhos
alegres dos meninos penso
no que vêem do telhado cada um
sob o céu escuro da cidade já dormindo
e triste canto
em voz baixa
com medo de acordar os outros meninos
em distantes telhados cada qual
um rascunho de gente
e já tão gasta e sem sorrisos
o canto some
e fica só a noite derramada sobre
os telhados e os meninos
que vão se apagando aos poucos os tantos
como as estrelas engolidas pelas nuvens
e silenciam
seus sonhos coloridos sobre as casas sem cor
e em cada telhado
repousa só um corpo magro que não canta mais
um menino

(scs, 71213)