sem título

mentirosas memórias
me visitam
alarmadas
folhas enganadas
pelo vento

uma pintura borrada
com tintas inconstantes
do passado que nunca esteve lá
e a melodia muda de ecos
entoa a canção que nunca cantei
do amor que nunca deixei
do rumo que sempre temi

mas são apenas névoa densa
das memórias inventadas
pelas memórias que não tenho

(scs, 8813)

retrato

uma antiga foto amarelada
datada de 1829:
uma família: pai, mãe,
três filhos: uma menina, dois meninos:
tristes, sem sorrisos, alma amarelada;
menina ao lado da mãe,
tranças compridas sobre o vestido branco,
mãos sobrepostas, sapato branco, meia branca,
uma flor branca no cabelo,
conformada com não ser ninguém
sem existir de verdade
nenhuma alegria;
meninos ao lado do pai,
vestidos com roupas iguais,
com igual ódio nos olhos,
calça escura, camisa clara, casaco daquele veludo antigo de velório, escuro aberto,
gravata fininha, mãos para trás,
vida para trás, incompleta
bico do sapato gasto, cabelo curto ridículo,
ombros caídos (com o precoce peso da vida)
a mãe
uma mulher que um dia foi bela e acreditou que sempre seria
e no amor que sempre seria e em suas obrigações
na vida que dedicou – cabelos brancos, rugas, mãos angustiadas, boca sem…
num vestido comprido, de muitos babados
simetricamente arrumado
que não parecia dela (ou ela)
seu olhar olhava para o nada, vazio
nem triste nem satisfeito, apenas nada
(mas uma senhora plenamente cônscia de suas responsabilidades
e deveres e do nome do marido)

e o pai
orgulhoso