à noite

não sei imaginar o fel
na dobra da pele
ou o rancor que não fere
ao contemplar os olhos vazios

mas há descaso no vento
e nas mãos que não querem ondas,
somente desacenos cínicos
outrora pássaros de asas duras

o que persiste ainda almeja
a manhã sem orvalho e ninho,
permeado de sonho e fastio,
firme, ainda que inconstante o pesar.

e adormece, sem cobrir o torso,
nos musgos que fumegam à noite.
a canção do tempo perdido embala o sono
e a chuva fina faz tudo findar

grafite

Com um lápis amarelo na mão.

Ela sempre os segurava com carinho, como se fossem o dedo de um bebê. Bem apontado, terminava numa ponta muito fininha, que só permitia escrever suavemente, mal tocando no papel, quase deixando-o escrever desenhar rabiscar anotar sozinho. Do outro lado, a borrachinha cor-de-rosa, intocada, que nunca seria usada. Mesmo quando o lápis, impossível de ser utilizado ainda por causa de seu tamanho, fosse colocado amorosamente na caixa ao lado do cadáver-anão de outros lápis, a borracha estaria imaculada, virginal, íntegra desde que nascera.

E eram sempre amarelos os lápis. Uma cor forte, visível de longe, que enfeitavam a mesa como flores ou como penas de pássaro ou como fios de bordado. Eram deixados ali displicentemente dispersos, sempre onze, com uma difícil simetria em seu arranjo, um tecido de lápis e mesa em urdidura complexa, indecifrável para olhos e mãos que não amavam os lápis amarelos como ela. Não eram abandonados ou jogados sobre a mesa, mas deitados sobre ela, bebês amorosamente levados ao berço, mão sob o pescoço para que não acordem, uma ajeitadinha a mais para que estejam confortáveis e sem pesadelos.

Não gostava de amarelo. Não havia nada de amarelo em sua vida. Nem gema de ovo. Nenhum vestido, nenhum enfeite na blusa de festa, nada em seu computador ou na bijuteria chique que usava. Nem os post-its que espalhava pelo escritórios, escritos com sua caligrafia bonita com lápis amarelo, eram amarelos. Só os lápis. Aquele tom em especial a maravilhava, fascinava, acariciava seus olhos, uma paisagem dourada que não cansava de contemplar. Por isso, eram tratados com tanta dignidade, misteriosa volúpia casta, de mal tocar, um afago mínimo para reafirmar o amor e manter a dispersa ordem. Deslumbramento.

Tudo escrevia a lápis, sempre onze sobre a mesa, múltiplos tamanhos. Alertavam que lápis podia ser apagado, fácil falsificar, alguém podia modificar informações importantes. Não ouvia. Usava os lápis, amarelos, e fazia seu serviço a lápis e escrevia longamente a lápis e dava ordens e deixava bilhetes carinhosos a lápis. Apesar das ameaças, sua escrita era indelével, única, imorredoura. Seus lápis não tinham grafite: tinham diamante.

Nunca deu nome aos lápis. Seria demais, um exagero, esquisitice. Eles é que a chamavam pelo nome – Bebel –, inaudivelmente, mas ela os ouvia. E de pronto os atendia, tomando-os para escrever um novo relatório, outro bilhete, mais um poema erótico secreto que só ela entendia. Cada um deles, mesmo quando os onze falavam ao mesmo tempo, tinha uma voz diferente, bem própria, que revelava sua personalidade e seu uso. Não somente eram onze, mas cada um tinha uma função específica. Com aquele, apenas os bilhetes. Com este, nunca os poemas. Aqueloutro, unicamente os relatórios da presidência. Cá este outro, sim, as confissões no diário.

Dedicada como era, Bebel era sempre a primeira a chegar ao escritório. Com flores que dava a si mesma. Mas nenhuma amarela. Jogava-as de qualquer jeito no vaso (só sabia arrumar lápis), organizava os pequenos seres amarelos, suspirava uma canção de amor bem antiga a eles e passava a trabalhar. Sorridente, cantarolante, autoritária, maternal. O dia todo assim.

Então, naquela manhã, Bebel – Isabelina Marcondes Ferreirinha, solteira – morreu. Subitamente. Cabeça caída para trás. Com um lápis amarelo na mão. E outros nove sobre a mesa.

(scs, 231011)