dor de cabeça

estranha sensação
de não ser eu quem
está(ou) aqui
de outros pensamentos
ordenarem meus sentimentos
reações
uma estranha e entorpecente
dor de cabeça
um desconforto inexplicável
olhos indispostos a permanecerem
abertos
mente decidida a pensar de modo
confuso
e a vida circulando lá fora
– mene, mene, tequel –
arrastando mundos atrás de si
exigindo atenção,
sinergia, prazos, comprometimento, cartão-ponto

só queria poder parar um pouco
e ter certeza de que aquele
ao leme
sou eu
e que aquele na gávea
sou eu
e que aquele dormindo em paz
sou eu
e que aquele mergulhando com baleias
sou
e que eu é que sonho ou vivo
aqui

(scs, 111011)

par de meias

E ele nem sabia o que fazia ali, já que detestava manhãs frias fora da cama. E perguntas paradoxais. Como meias de cores diferentes reunidas como par na primeira gaveta no quarto escuro, pois não podia acender a luz e acordar a esposa e os pesadelos. Mesmo assim, tomou café frio, a manteiga havia acabado.

Parou no meio da calçada, cabelo despenteado se ajeitando com o vento e a fumaça dos ônibus, e um cheiro de cigarro vindo não sabia de onde. Era só uma criança ranhenta brincando com uma bituca jogada ao chão, calçada suja. Sorriu, pois de crianças curiosas sempre gostou. As de cabelo fininho e preto. Mas não ao ponto de ter filhos. Não tinha paciência. Nem lugar no apartamento. O condomínio aumentou esse mês e o elevador continua sem luz. Preferia ficar em silêncio por muitos dias. O ranho escorreu até a boca, mas a criança não se preocupava com isso. Etiqueta social é uma bobagem. Essa lição a criança havia aprendido sem saber. E, além de serem de cores diferentes, o tecido das meias era diferente também. E o elástico da bege não prendia direito. Talvez por ser bege.

Meia escorregando. Para arrumá-la, teria de ficar em um pé só encostado na porta da garagem. A grade estava muito suja. E não gostava de ficar em um pé só. Desde pequeno. Acho que tinha cinco. Só de polícia-ladrão. Sempre atirava à queima-roupa com sangue frio sem os dentes da frente. E a mão estava fria. Se tocasse na perna, sentiria arrepios.

Passou por ele uma moça perfumada, alta, ruiva. A saia era muito curta pra uma manhã tão fria. Que ridícula, mal sabe se equilibrar sobre o salto, com perfume barato, nem como desinfetante serve e deve ir pro trabalho assim, ofender o ambiente e servir de chacota para os colegas. O espelho deve ter-se quebrado e nem existe espelho pra perfume.

Puxou a meia rapidamente, limpou a garganta, pois nem precisou tocar na grade, pensando que fosse quarta. Mas era terça! Ou segunda? Quarta, com certeza, não. Então, posso voltar pra casa e trocar as meias. Como havia caminhado pouco, não precisaria jogá-las no tanque, só devolver à gaveta, a primeira, como se nada tivesse acontecido nem visto a moça nem acender a luz. O mercadinho ficava na outra esquina.

Decidiu seguir a moça ruiva, que andava ligeiro apesar do salto alto vermelho e do perfume barato. Atravessou a rua e logo entrou num prédio alto, cinza, que não combinava com a saia nem com o salto. Cumprimentou o porteiro e perguntou se ele sabia o nome da moça ruiva. “Não há moça ruiva alguma neste recinto, senhor!” Mas ela havia acabado de entrar e de cumprimentá-lo! E não havia mesmo ninguém mais ali naquele recinto. Nem o perfume barato. Pediu desculpas, pois confundiu alguém com uma amiga de infância.

Voltou para casa, pois a meia estava escorregando, agora a outra. Marrom. A bituca estava extinta, apagada pelo ranho escorrido e a criança juntava latinhas de refrigerante. Precisou acender a luz, para saber em que lado da cama deitar. Felizmente, a moça ruiva não acordou.

(scs, 221011)