na palavra muda

em cada olhar
o outro
partindo

nas costas apressadas
o nada
rugindo

no sonho roubado
a angústia
parindo

no gesto frio
a ausência
vingando

no aceno educado
o fim
chegando

no abraço morno
o asco
pingando

na não-lágrima
o eco
gritando

na mão moribunda
o quasar
apagando

na palavra muda
o silêncio
reinando

no suspiro aliviado
a partida
nascendo

no sorriso extinto
o brilho
morrendo

(mc, s/d)

cansaço

no corpo que agora tenho
tenho um cansaço sem fim
sem dor
sem prazer ou esperança

os dias se arrastam
a vida não passa
o sono
de todo tempo aqui

faz o desejo de paz
se agigantar, carência
tamanha
esgota as forças e os sonhos

no tempo de meu cansaço
sinto o sangue escorrer
vermelho
pelos poros e gotejar

sem pressa e sem pudor
aumentando o cansaço
falta de (l)ar
falta de razão pra continuar

cansado de ser, de ver,
de lançar os olhos à maré
crescente
as mãos descaídas escorrem

em direção à cova
ao húmus molhado
orvalho
repouso final por enquanto

o corpo na terra, na relva
olhar vazio de gozo
só nuvens
a mudar de lugar e sabor

e o mundo passa, vaga,
o corpo repousa sem dor
imóvel
o corpo e o húmus são o mesmo

o nada, o não-mais
nenhum fôlego ou lágrima
lamúria
despede-se da ausência e não é

ao final, o cansaço se vai
inexiste em suas entranhas
ser vazio
um corpo sem mais morador

(salvador, 9129)

flor

e da desesperança nasce a flor
sob o sol forte
debaixo da mão carinhosa
das lágrimas que regam
dos dias longos que não precisavam ter fim

sorri a flor nascida
onde nada podia ser
onde sua semente foi jogada
por um vento, um sopro, uma gota de sangue,
um acaso, Deus, uma decisão talvez

o solo árido foi rompido
vencida sua morte, seu desamparo
e, ainda suja de terra-placenta,
se ergue, esgueira, insiste
temerosa a flor

(aracaju, 12129)