parto

no repouso longo da caneta
a palavra se esconde
foge
sonolenta
sem memória
surda e sem voz

é convocada, exigida,
luta intensa
distração, fuga
rédea
suor
a falar

membros atrofiados, enrijecidos
dor ao menor esforço
distante lembrança do prazer
de manifestar-se.

mas a palavra gera palavra
que se traz à tona
e se desnuda e procria
e se alonga e se espalha
irradia luz e idéias e palavras

(scs, 19110)

o menino

o menino
perdido entre pernas tão altas
que colocam as bocas falantes lá no tão alto
quase nas nuvens do céu dos olhos do menino
tenta repetir
as palavras das bocas falantes que falam lá no alto
e seu sério empenho
em falar como falam os grandes
é recebido com risadas e aplausos e exageradas emoções
ele se sentiu ridículo
e desprezado
e estúpido
e se amaldiçoou
e se censurou severamente por querer agradar aos exigentes adultos
e se afastou das pernas e bocas e beijos babados
e nunca mais
falou

(mc, 12119)

na palavra muda

em cada olhar
o outro
partindo

nas costas apressadas
o nada
rugindo

no sonho roubado
a angústia
parindo

no gesto frio
a ausência
vingando

no aceno educado
o fim
chegando

no abraço morno
o asco
pingando

na não-lágrima
o eco
gritando

na mão moribunda
o quasar
apagando

na palavra muda
o silêncio
reinando

no suspiro aliviado
a partida
nascendo

no sorriso extinto
o brilho
morrendo

(mc, s/d)

cansaço

no corpo que agora tenho
tenho um cansaço sem fim
sem dor
sem prazer ou esperança

os dias se arrastam
a vida não passa
o sono
de todo tempo aqui

faz o desejo de paz
se agigantar, carência
tamanha
esgota as forças e os sonhos

no tempo de meu cansaço
sinto o sangue escorrer
vermelho
pelos poros e gotejar

sem pressa e sem pudor
aumentando o cansaço
falta de (l)ar
falta de razão pra continuar

cansado de ser, de ver,
de lançar os olhos à maré
crescente
as mãos descaídas escorrem

em direção à cova
ao húmus molhado
orvalho
repouso final por enquanto

o corpo na terra, na relva
olhar vazio de gozo
só nuvens
a mudar de lugar e sabor

e o mundo passa, vaga,
o corpo repousa sem dor
imóvel
o corpo e o húmus são o mesmo

o nada, o não-mais
nenhum fôlego ou lágrima
lamúria
despede-se da ausência e não é

ao final, o cansaço se vai
inexiste em suas entranhas
ser vazio
um corpo sem mais morador

(salvador, 9129)

flor

e da desesperança nasce a flor
sob o sol forte
debaixo da mão carinhosa
das lágrimas que regam
dos dias longos que não precisavam ter fim

sorri a flor nascida
onde nada podia ser
onde sua semente foi jogada
por um vento, um sopro, uma gota de sangue,
um acaso, Deus, uma decisão talvez

o solo árido foi rompido
vencida sua morte, seu desamparo
e, ainda suja de terra-placenta,
se ergue, esgueira, insiste
temerosa a flor

(aracaju, 12129)