Silentium

Ossip Mandelshtam

Ainda não é nascida.
É só canção e poesia,
E está em plena harmonia
Com tudo o que é vida.

O seio da onda arfa em paz,
Mas como um louco brilha o dia
E a espuma pálido-lilás
Jaz no azul-névoa da bacia.

Que em meus lábios pairasse
A quietude original
Como uma nota de cristal
Pura desde que nasce!

Volve … poesia e a canção,
Sê só espuma, Afrodite,
Coração, desdenha o coração
Que com vida coabite!

(1910)

(fonte)

Bosque

não havia na dor o adeus
só uma lembrança
um suspiro impensado
e no gesto apagado
não havia mais o sopro
nos cabelos molhados
somente do sonho
a sensação do fim
e a paisagem, o bosque
se desvanece e
fica o toque, a marca
dos dedos delicados
e os passos vão se afastando
sem pressa
levando consigo o aroma
a presença que não está.
sopra um vento suave nas folhas

(scs, 21710)

A Emoção Fugitiva

Pablo Neruda

Vamos buscando a emoção
que não podemos encontrar
neste tédio sempre igual
que nos envolve o coração.

Enfermos deste eterno mal
que antes que nasça algum amor
alegrará com sua canção
esta amarga solidão,

o matará com sua dor
que soa como perpétuo
e lento toque de maldade
dentro do nosso coração.

Vamos buscando a emoção
que não podemos encontrar
e desejamos com ardor.

Pablo Neruda, in ‘Cadernos de Temuco’
Tradução de Albano Martins

(fonte)

Viver

Carlos Drummond de Andrade

Mas era apenas isso,
era isso, mais nada?
Era só a batida
numa porta fechada?

E ninguém respondendo,
nenhum gesto de abrir:
era, sem fechadura,
uma chave perdida?

Isso, ou menos que isso
uma noção de porta,
o projecto de abri-la
sem haver outro lado?

O projecto de escuta
à procura de som?
O responder que oferta
o dom de uma recusa?

Como viver o mundo
em termos de esperança?
E que palavra é essa
que a vida não alcança?

Carlos Drummond de Andrade, in ‘As Impurezas do Branco’

(fonte)

Escola

Nuno Júdice

O que significa o rio,
a pedra, os lábios da terra
que murmuram, de manhã,
o acordar da respiração?

O que significa a medida
das margens, a cor que
desaparece das folhas no
lodo de um charco?

O dourado dos ramos na
estação seca, as gotas
de água na ponta dos
cabelos, os muros de hera?

A linha envolve os objectos
com a nitidez abstracta
dos dedos; traça o sentido
que a memória não guardou;

e um fio de versos e verbos
canta, no fundo do pátio,
no coro de arbustos que
o vento confunde com crianças.

A chave das coisas está
no equívoco da idade,
na sombria abóbada dos meses,
no rosto cego das nuvens.

Nuno Júdice, in “Meditação sobre Ruínas”

(fonte)

sobras

parece sobrar só a angústia
entre a areia e as flores
nada novo vem e nada sopra
o hálito de vida ou de alento

então, sobra somente a dor
e não há mais amplidão
só o aperto estreito do abraço frio
insone, amassado, noturno

e ainda hoje sobra tão-só um desejo
um anseio morto no peito
não-nascido, lamúria silente
andando trôpego ao luar

e outra vez sobra só a solidão
do caminho nos campos
os pés orvalhados e a grama morta
no silêncio profundo sem horizonte

e por ora o que sobra é anseio
na viagem surda entre nuvens e
pedras agudas que ferem
e o sangue verte e marca

as sobras de cada sempre
das manhãs que não chegam
das noites que não findam
e não mais folhas secas

emoldurando campos floridos
mas a sobra, nada mais
somente a sobra

vertigem

não te sei do olho senão a vertigem
onde te penso noite
a fina e epidérmica fuligem
consome qual açoite

e não mais te vejo senão em saudade
como a bruma que passa
roçam as mãos e ferem-me com maldade
fica o riso sem graça

nem mesmo canto minha dor no lago
não ouço o calmo jardim
falta o torpe laço e o afago
sem perfume a aurora e o jasmim

(sc, sd)

retorno

ainda que venha sem fim o dia
mesmo que o tempo não seja
será sempre a dor alheia
e não mais o desprezo e o asco

a imagem tão bela, mas não mais
se desvanece e vai como ontem
deixou de ser, e a sombra some
e a luz lhe toma o lugar e ri

e ainda que a insistência doa
a mágoa cresce e se vinga
do coração o frêmito é cinza
em espasmos sem prazer ou luz

(scs, 19410)

(fonte da foto)

quem somos

Quem somos, senão o que imperfeitamente
sabemos de um passado de vultos
mal recortados na neblina opaca,
imprecisos rostos mentidos nas páginas
antigas de tomos cujas palavras

não são, de certo, as proferidas,
ou reproduzem sequer actos e gestos
cometidos. Ergue-se a lâmina:
metal e terra conhecem o sangue
em fronteiras e destinos pouco

a pouco corrigidos na memória
indecifrável das areias.
A lápide, que nomeia, não descreve
e a história que o historia,
eco vário e distorcido, é já

diversa e a si própria se entretece
na mortalha de conjecturados perfis.
Amanhã seremos outros. Por ora
nada somos senão o imperfeito
limbo da legenda que seremos.

Rui Knopfli, in O Corpo de Atena

(fonte)