o frio é ingual a morte

é, sim
vai entrano sem dizê com licença
          pelas fresta
           da porta
          do vidro quebrado
          das ropa
          dos pensamento
          da vidinha da gente
sesguerano
um intruso
ninguém chamô, mas talí
dizeno presente pruma chamada que prefessora ninhuma fez

o frio danado
vai machucano
faz os dedo doê
faz o nariz pingá
faz os óio chorá
martrata mess
e acho qui nim ele mess sabe pruquê
só vai esfriano tudo no caminho
e vai fazeno um caminho
que inté é bem bonito

as pranta cuberta de geada
as pedra grande de gelo que o céu manda
aquelas nuvi com cara brava
quiscondi o sol como se ele nunca mais fosse vortá
qui faz os pessoal se enrolá nos casaco
no sobretudo que tava com chêro de mofo
inté nim cubertô
que era pra usá só na cama
mais o frio faz a gente não tê dessas bobage, não
o que importa é não senti frio
não deixá ele se chegá muito
só ficá lá fora, pra dá esse gostozinho
esse sincoiê todo
fazê gelo fino nos vidro
fazê fumacinha da boca de guri que não fuma
querê tomá sopa bem quentim
torceno pra ele í simbora bem rápido

no frio parece que as pessoa se ama mais
puromeno ficam mais juntin
mais pirtim
feito gente que vai se dispidí pra nunca mais se vê
inté os menino, sempre arredio com essas coisa de carinho de mãe,
se aprochega degavarzim
mei pedino colo uma esfregada na ponta do nariz vermeio
limpando o nariz na manga do casaco surradim que só

o frio é mau
mais faiz umas coisa inté bonita de se vê
de se apreciá
como o homem do campo
          que tá sempre trabaiano
sem tempo pra patroa nem pros minino
mais no frio
desse lascado, de prendê o vivente em casa,
o homem de cara dura
que parece num gostá de outras gente
é obrigado a ficá com a famía
a oiá pra muié com argum carinho
          e se lembrá que tá cum ela prucausa que um dia se amaro
          e se lembrá de como que ficô bobo quando os minino viero
e o frio faiz ele desancarrancá
e a chamá a muié, meio sem jeito, rudão lá como ele é,
pra sinroscá nos braço dele, no pala grandão que ganhô num lembra di quem
e pra puxá os bacuri tamém
já meio ranhentinho purcaus do frio
e eles fica ali
pirtim do fogão a lenha
oiano pra fora
pro mundo frio congelado sem gente
e oiano um pra cara do outro
carona feliz, vermeia do calô do fogão
vermeia do calô do coração
tudo junto, uma famía traveiz

o frio marvado
martrata a dona varquíria, coitada
sem marido pra valê purela
sem fio nem parente pra ajudá na lida
tem de peleiá sozinha todo dia
e o rematismo ataca doído no frio
e as dô nas mão fica mais forte no frio
e o pigarro feio fica mais feio inda no frio
e as ropinha que ela tem num protege ela do frio
e a lenha jacabô antes do frio
e ninguém simporta muito com ela
gente que tem o coração frio
e o frio que se entremete
que num respeita as tranca
e as bucha de jornal na janela
a brasinha miúda no fogão
foi sispaiano na cozinha, pititica ansim, da dona varquíria
e num sossegô enquano num matô a pobre
e ela morreu sigurano o úrtimo graveto que tinha

pelas minha observação
pelas andança por esse mundo de meu Deus
pelas prosa que a gente escuta na porta da igreja
           no buteco com bilhar
          das mãe na saída da iscola
           dos moço que recrama da vida (ah, e eles nem começô a vivê e já acha
                    que sabe tudo dessa vida e que pode inté
                    insiná os mais véio)
          pelas confidência dumasalma sem esperança
          pelos cochicho em velório (algumas pessoa finge tá triste, mais otra
                    de fato sente farta de quem partiu)
          pelas piadinha nos quarto de gente desenganada
           nos muito sotaque e modo di falá
só posso concruí
que o frio é igualzim a morte
inté acho que um é o otrô
que eles só troca de nome pra não espantá as pessoa
ninguém gosta da morte
mas o frio tem até um lado bem bonito
que engana
e entra
sem respeitá nada
e maltrata
e mata

ó o que aconteceu ca dona varquíria

(fonte da foto)

carta de despedida

Prezado amigo que não está mais a meu lado,
não guardo mágoas,
mas arranquei de mim
todas as marcas
de tua passagem por minha vida.

Já não sei teu nome
nem as músicas desafinadas que cantavas.
Apaguei-te em todas as fotos,
nos vídeos,
da porta da geladeira
e de cada pizza.

Não lembro do apelido que coloquei em ti,
da atriz com quem sonhavas,
do número do teu telefone,
do modo como rias ou arrotavas,
da força da tua mão,
das manias irritantes
não lembro.

Não há vazio nas lembranças,
não há nada,
pois, hoje, nunca fostes,
nunca estivesses,
nunca houve lugar em mim para ti.

Não há rancor,
pois não há rancor do que não é.

Deixaste de ser,
uma existência que sempre inexistiu,
um ninguém constante
e desde sempre ausente.

E em tudo em que um dia
foste presente
agora e desde sempre e para nunca mais
há nada,
há outro,
há mais de outra substância,
fonemas alma carne suspiros prosódia quadros.

Prezado amigo que não és,
nem sei para onde enviar
essa carta
sem destinatário.

(mc, 25109)

(fonte da foto)

a janela

janela

a janela me espia
com seus olhos de vidro
me invade, investiga, intimida
é transparente
vê tudo em mim
minha vergonha, meus segredos, meus fluidos

os olhos despudorados da janela
de vidro
me conhecem, me atravessam
dizem que sou o que não sei de mim
e olham sem parar
enrubesço
ameaço
corro rua abaixo
esbarro na vizinha gorda
e os olhos continuam me olhando
olhando, olhando, olhando
cada vez mais dentro de mim
minhas células
meus pensamentos perversos ocultos
mortes e cobiças e pêlos e fugas e ódios

e os vítreos vívidos volumosos olhos
de janela
contam pra toda rua
pro bairro e
pro mundo todo
o que viu vasculhando em mim
e ri com seu riso de veneziana
de mim
de meus íntimos guardados
          lacrados
          amaldiçoados
          feiosos
          lindos
sonhos e pecados
e sem pudor
sem dó
sem clemência
sem vergonha
grita e conta e canta e ri e declama e vomita

não posso mais sair à rua
sou visto e rido
sou visto e apontado e apedrejado
até os bêbados riem de mim
          e as prostitutas tão castas
          e os fantasmas do cemitério
          e os baderneiros na cadeia
          e as velhas carolas de duvidável virgindade
          e os cândidos estupradores
          e os padres podres
          e as inocentes crianças
todos riem e xingam e batem e fecham os olhos e jogam “ai, meu Deus!” aos céus
quando passo
não querem me ver
não querem se ver em mim
nas coisas que os olhos vidrosos contaram

sou o que todos são
mas sou o único que sou

e a maldita nojenta vidrante falosa linguarenta janela
realizada
vai dormir sossegada

amanhece despedaçada
seu sangue cacovidrado espalhado pela calçada
o tijolo
arma do crime
fez bem seu trabalho
jaz sorridente na alma da criminosa delatora

todos os meus segredos voltam para dentro de mim

(mc, 25109)

(foto: fonte desconhecida)

menino

balao

o menino correu pela rua
atrás do balão cor de vida
e nunca mais voltou

e quando voltou
já não era menino
pois havia alcançado o balão

que estourou em suas mãos
feriu sua inocência
machucou sua alma de menino

e agora ele não corre mais
atrás dos sonhos-balão
só atrás do ganha-pão

do rouba-vida
do mata-sonho
do adeus-menino

(foto: autor desconhecido)