cheguei à ilha

I
O pé na água. Fria.
A areia. Caminho. Dois passos apenas. Os primeiros.
O barco já se vai. Muito rápido. Como que
arrependido de ter vindo. Como eu. Talvez.

II
O Sol brilha na espuma muito branca
da onda outra onda outra onda
que chega à praia, molham-me,
ainda na água. Dois passos apenas.
E a água já os apagou. Já não sou. Já não cheguei.

III
À direita, rochas, molhadas e secas,
algas, pequenas piscinas, peixinhos aprisionados.
À esquerda, a areia como sem fim, sem pegadas,
lambida pelo mar
brilhando diamantes sem valor ao Sol.
Coqueiros, árvores, nuvens, mar.
A eternidade se derrama na praia. Cansada.
À frente, a areia branca forma uma sala
de árvores grandes na parede;
no meio delas, uma trilha impassada
sobe um morro lá acima visto,
sombrio, enegrecido de um mistério,
pássaros rapinando o guardam.
Em mim, solidão,
uma mochila vazia às costas,
os pés na água
e o frio e o silêncio só das ondas
e a cor do céu borrado de nuvens
e o barco que já foi
e os passos que já foram.
E eu.

IV
o tempo não existe quando não é medido
quando não sei o que é quando
não há marcas sinais pontuação
só um passar e outro
como as ondas ali
que são as mesmas sendo sempre outras
e as nuvens desaparecem voltam as mesmas-diferentes
a imprecisão dos pensamentos que nunca somem
vão retornam são mudam insanos inlúcidos transparentes avessos
e sei ou talvez só imagine que já é outro(s) dia
pois o sol se foi quando não vi
a luz iluminou o que não vi
nasceu outro dia no dia anterior
e nada é mais o que é hoje
o tempo na ilha é a própria ilha

V
O pássaro ferido na areia branca
manchou a areia com seu sangue vermelho
a onda verdazul lavou a areia
e levou o pássaro
que não sabia nadar.
De ferido não sabia voar.
O mar não perdoa e a areia não tem memória.

VI
Caminho sem extensão pela areia à esquerda,
longe da sala-de-árvores.
Há um temor estranho por me afastar
pela primeira vez
(mas não sei o tempo nem o ontem)
do ninho seguro, o recanto,
o onde sou-na-ilha.
Caminho.
Cada passo já não é — os deixo
onde as ondas possam carregá-los,
feridos como o pássaro,
não sabem voar nem nadar.
Afogam-se e já são apenas outrora.
Desfaço-me em cada passo de meu passado,
aquele que não tenho,
que ainda vou viver, mas não o quis,
na estranha certeza de que há mais de outra em mim
e de que não nos encontramos ainda.
Talvez eu esteja caminhando até ela,
mas tenho medo de prosseguir.
Aqui, entre céu, palmeiras e água,
ondas mais bravias,
desisto da loucura,
corro corro corro
de volta ao escondido.
Segura, enfim.

VII
O mar devolveu o pássaro
morto
à praia.
Apodrecido.

VIII
A noite está escura. A Lua foi devorada por nuvens escuras.
O mundo todo desapareceu.
Não quis acender a fogueira. Quero a inexistência do que não posso ver
oculto pela escuridão.
O mar está silencioso, como se não.
As árvores não sussurram seu raspar de folhas.
Nenhum dos animais, nem a fera, ruge, pia, chora, gargalha.
A noite está escura.
Meus olhos se fecham. E tudo brilha.

IX
Não é solidão eu estar aqui sem mais ninguém
no imenso mar a minha frente
a meu redor
a única no imenso mar
sem ondas transparente morno silencioso.
Sou sua única mancha, uma nódoa flutuante,
como foi antes o pássaro morto,
mas estou viva. Penso.

X
Minhas pegadas nas areias saem de mim
e voltam para mim. Eu me trago a mim mesma
todos os dias, para me apresentar,
tentar ser minha amiga — ainda que não confie
não me sinta à vontade. É estranho
alguém tão estranho, solitária morna silenciosa
opaca.
Não me conheço os olhos, não me encara,
como se tivesse medo de mim, de eu a transparecer,
de sondar-lhe o mistério de ser quem é
ou de ter sido.
Sentamo-nos as duas, lado a lado, ao crepitar da fogueira,
em cúmplice e desconfortável silêncio. Como um estrondo.
A fogueira morre. Ainda estamos aqui. Só eu.

XI
sonhei de novo que eu estava num deserto
vasto azulado
rasgado por um fio dágua
e que a água ia se transformando em leite ou sangue
e meus pés se banhavam nela doloridos
o rio me tingia com sua cor eram cores
e ia me transformando em um pássaro imenso assustado
frágil como um suspiro de saudade com sua dor
e o mar chegava até meus joelhos gélido
o pássaro morto na areia a água levava
e ele sumindo sendo feito parte da água
no deserto
acordo. de novo

XII
Escutei uma música no ar. Acompanhada de perfumes. Tudo sibilante
rompendo a manhã,
fazendo-me uma estranha companhia. Uma invasão, uma avalanche,
um chamado. Um brado.
Não sei de onde vem. Está por toda parte,
na minha pele, molhada do mar,
luzindo como uns pequenos olhos curiosos,
sondando-me, ecoando dentro de mim,
revirando uns quartos escuros, lembranças do que nunca fiz,
mais notas, mais aromas.
A música me envolve, tomando forma,
soprando uma voz que não era minha, mas saía de outra eu,
acusando-me de ter fugido,
batendo em meu rosto com raiva,
um compasso firme, marcial, de marcha para o cadafalso,
o aroma queimado, flores pisoteadas pelo
caminho. Caminho.
Fujo. Quero correr para um não-lugar,
um distante de mim, ausente de eu ser,
mas a música segue, altitrovejante,
grudada em minhas carnes,
se enroscando em minhas pernas, me derruba
e a onda molha meu rosto, algas no meu cabelo,
a música vindo em ondas, e também nas outras,
e o perfume, agora de uma doce acidez,
revira minhas entrahas, arde,
queima a mão debaixo dágua,
arranca um grito com sangue:
– Eu fui! Eu era, mas não escolhi! Eu fui ela!
E a música cessou. O perfume morreu. As ondas se foram. O tempo
voltou a estagnar. Meu coração
sentia a extravagância da paz de novo.
Finalmente, eu.

I
O pé na areia. Fria.
A água. Caminho. Dois passos apenas. Os últimos.
O barco já se vai. Muito rápido. Como que
arrependido de ter partido. Como eu. Talvez.

(scs, 1313)

à vida

a Francisco Genciano

A vida,
ah! a vida, que se compraz complexa
em nos contemplar, interrogações tantas
– e seu fim, hoje vencido –
procurando ela respostas em nossas perguntas

Havida por desat(f)inado des(penhadeiro)afio
é antes ninho, impreciso abrigo
a ser percorrido com destemor, fé pensante,
com ternos afetos de misericórdia,
– a já abandonada tolice de criança –
um rio profundo e silencioso que leva
àquela vasta biblioteca, de corredores eternos:
tudo a se conhecer

Filosovida
fia tramas de brilhos tontos
na alma que se derrama
sabendo-se ínfima (mas desejosa
de tudo
de saber)

Irremediável (a)ventura
sempre nova loucura
uma navegação ao sabor do vento
sábio vento
as margens, paisagens inexploradas
os recantos, prantos abandonados
as encostas, respostas angustiadas
as colinas, rotinas e novidades
as montanhas, façanhas de amor
percorrer, sim, sem medo
a vida toda,
o vislumbrado enredo

mim

sou

1
(im)preciso
ser
assim

nós
2
solidões
lado
a
lado

acordo
às
3:
sou
ainda
mesmo?

de
4
procuro
respostas
(in)existentes:
[eu?]

os
5
dedos
apalpam
minha
inexistência

corro
para
alcançar-me
antes
de
vo6

escolho
7
livros
(d)escrevendo
quem
sou

alguém
af8
pelo
encontro
comigo
– serei?

vida,
re9-me!
o
espelho
diz:
igualainda

10esperado
tateio
meu
rosto:
quem
és?

sino
de
br11
informa:
durma
desesperada’mente

minha
over12
de
perguntas
silencia
urrando

temo
13
badaladas
inquirindo
de
mim

caminho
por
14
q-u-a-d-r-a-s
fugindo
tr.ôp.ego

na
15a.
desisto:
sempre
soufuiseria
eu

tive
16
u,m
dia
… bruta
saudade

pouco
vivi
os
17
tentando
ser-não-ser

ind…epend…entes
18
em
mim
prisões
infant~adultas

impreciso
aos
19
preciso
saber-me:
quem?

20
dizer:
sim –
sou
eu
assim

talvez

ele escrevia afoitamente no caderno sem
linhas com pressa suando rouco palavras
desconexas ideias loucas como se
perseguido por elas sem pontuação sem
pensar com pressa de dizer o que
pensava nem pensava só escorriam de sua
mão tudo o que queria falar nas
frases jogadas ali espasmos suspiros ecos
roubados do pouco tempo que lhe
restava e ainda havia muito a sangrar em
letras corridas mal escritas suor mancha
ndo a página gotas na testa sobre os olhos lúcidos
a boca seca balbuciando o que a tinta produz
ia mostrando o coração o ânimo o desalento ninguém
gosto de café na boca a noite mal dormida o cansaço
não o fogo a paixão a ventura de abrir uma
janela no papel de ver do outro lado ele mesmo
o outro não ele o avesso da alma a pia
água fria acordar pois já é outro dia e ainda
há muito a gravar fundo nas linhas que não existem
existência sem fim solene saudade angustiada convívio
ácido da mente com as frases entrecortadas
de lâminas de barbear sangue fuligem remorsos
matinês e madrugadas antes outras não mais
vivazes capazes de responder explodir
implorando serem ditas malditas esquecidas como querem ser
uma ânsia quase faz parar tontura a mão treme rasga
o papel cai a caneta choro retomar com sofreguidão é sim preciso
o destino o fim não não não antes do fim até
o fim as palavras dádiva que é respirar peito arfante
palavras arrancadas do músculo da alma com pulso
tímido vibrantes outra e mais alguma onde está
a última a derradeira o sentido final a
chave o cume o eu ali para conseguir
o ponto final dizer tudo como não sabe mais
não sei mais desvaneceu-se como se nunca houvesse
sido encravada na rocha fóssil de amor abandonado rejeitado
parte do monte perene inascido irredutível de tão orgulhoso
então deixe de ser não vem não pode ser
parida a música já não toca desalmada
vozes rasgo profundo e o navio a ilha vagar apenas o súbito ressurgir
na garganta a força de novas palavras nuas indistintas nódoas inexatas
uma gaivota estremece o teto o pingente não um lustre
distante um resto de raio de luz um anelo então a tão doce voz
no estômago a certeza do vermelho o azul na tinta já pálida
o risco de morte a vida desvendada um morro de ventos
uiva o lobo reclama para a lua a noite que não
termina a viagem na distante estação do trem
sem bagagem sem origem só papéis sem linhas e tantas palavras no chão
folhas que as árvores não querem mais de
tamanha vergonha e sem cor desperdiçadas no chão úmido
de frase orvalhadas e teu cabelo ah teu cabelo
afago rude arranhão na pele na folha na poesia
íntima roubada mas ainda insiste a melodia distante
incômoda presença que consola então é novo dia já
não o mesmo ontem somente e lá ficaram as frases
ainda elas e de novo elas e à luz de velas
parecem já outras mas não há que se queimarem amanhã
e hoje mas onde onde o sorriso afogado na dor das palavras
soterradas de desencanto que ah tanto que nem dizem murmúrio eu te amo
o amor de distante voltou erupção insana ah me abraça como se eu não existisse
e precisamos escrever o fim que se perdeu
ele geme com a dor de não poder minha mão e a tua há de obedecer
as veias pulsam as palavras pulsam o suor o grande borrão no
papel faz uma ave plumas infindas neve ao redor nas árvores nos velhos
um sol e nuvens sopradas pelo hálito ácido a tormenta que chega
repulsa no âmago pois vêm outras não estas as definitivas
sim o que dizer no ápice no término como testamento
lembrança imorredoura prévia a de todas maior cicatriz
então o pulso se afrouxa a carne já se desfaz envolve
o respirar deixante o corpo a caneta tombando o traço trêmulo
preciso do sopro que termina o fim o fim
a última palavra
tomba antes a palavra eternamente gestada
talvez sou talvez amor talvez talvez nunca

(scs, 2213)

(imagem)