memórias a serem vividas

1.
sou
da
vida
umas
poucas
memórias

2.
lembranças
sem
início
de
mim
mesmo

3.
relembro
sem
sorrir
que
prossigo
ainda

4.
voltam
cedo
memórias
que
não
serão

5.
em
essência
os
fatos
nunca
passaram

6.
permanecem
como
rochas
acordadas
do
tempo

7.
imutáveis
sussurros
que
foram
vozes
rasgadas

8.
acordam
lembradas
dos
silêncios
entre
nós

9.
lembranças
despertadas
repetem
dores
cansadas
sonolentas

10.
um
amor
inesquecível
nunca
mais
existiu

11.
em
cada
sonho
um
novo
ontem

12.
registro
as
lembranças
– já
não
serão

13.
conflito:
fui
seria
passado
esperança –
trégua

14.
esquecidas
paisagens
por
ver
outras-
mesmas

15.
alegrias
revividas
dispersas
em
memórias
passageiras

16.
preciso
lembrar
de
voltar
a
ser

17.
eram
então
poucas
as
realidades
nascidas

18.
e
voltaram
sempre
novas
desde
amanhã

19.
em
seus
aromas
recados
do
futuro

20.
abraços
vastos
dados
ao
final:
começo

(sca, 271114, enquanto espero pelo cirurgião)

três violões

a Ricardo Ordovás Lopes

Eu os tenho.

No primeiro toco saudades inconclusas
com gosto de limonada, em volta da mesa
de ingênuas descobertas e tempo perdido,
um tempo de tão antes
que parece nunca ter sido
e ainda é.
Dissonantes notas telefônicas
de tempero quase infantil,
tolos códigos que a amizade exigia,
dos outros ao redor tão distintos,
que o tempo buscou apagar,
embalaram tanta imaginação na vida inspirada
e a vida mesmo levou pra longe.

Com o segundo, desafinado, canto da trilha solitária
descrita nas páginas infantis do diário
que fui fazendo ao caminhar
sem querer deixar marcas,
dores e cartilhas e buscas,
me antevendo em rostos e muros,
escondido no vento da longa jornada
abraçado pela noite em que a solidão
cantarolava rudes melodias
nascidas para serem selvagens: havia lugar para o amor!
amansadas pela rotina
e outros tantos desejos aninhados num coração pequenamente vasto,
à sombra de um amanhã feliz que eu mesmo fazia –
e já era de novo a hora do almoço.

O terceiro está silencioso.
Como eu.

Eu os tenho.
Não.
Eles a mim.

(scs, 23114)

sem título

mentirosas memórias
me visitam
alarmadas
folhas enganadas
pelo vento

uma pintura borrada
com tintas inconstantes
do passado que nunca esteve lá
e a melodia muda de ecos
entoa a canção que nunca cantei
do amor que nunca deixei
do rumo que sempre temi

mas são apenas névoa densa
das memórias inventadas
pelas memórias que não tenho

(scs, 8813)

epidemias (ou pequena discussão desimportante sobre a felicidade) (Raphael Cardoso)

THE SPECTRUM FOR HAPPINESS.jpg The Spectrum for happiness, Leonid Afremov

— Vim assim que pude. Você me pareceu tão preocupado ao telefone.
— Desculpe tirá-lo assim do serviço, amigo, mas eu não sabia a quem mais recorrer.
— O que aconteceu? Fale-me logo antes que eu tenha um treco.
— É… é que… eu acho que estou feliz.
— Fffe-feliz?
— É. Eu acho que sim…
— Mas… tem certeza, amigo? Felicidade? Tem certeza que não é asma? Reumatismo? Cólica? Como isso foi acontecer, meu Deus? Desde quando você está sentindo isso?
— Não sei bem ao certo. Lembro-me dum dia em que ele desceu do ônibus… Foi nosso primeiro encontro à luz do dia; só tínhamos nos visto à noite antes disso. E, subitamente, parei, extasiado, e disse “Você tem olhos bonitos.” Desde então, acho que os olhos dele me fazem feliz.
— Que horror, meu amigo. Feliz por causa duns olhos.
— É, eu sei.
— Você já contou para sua família?
— Não! Claro que não. Como posso chegar para minha mãe e dizer: “Oi mãe. Estou feliz, você acredita nisso? Sim, isso. Felicidade mesmo.” Ela me coloca pra fora de casa só com a roupa do corpo.
— Você precisa se tratar. Procurar um médico, ver uns filmes do Lars Von Trier, ouvir Antony and the Johnsons…
— Não adianta. Nada disso. Ontem à noite, fui para a cama com uns poemas do Bandeira. Daqueles que parecem navalha cortando a alma, sabe? Nada. Nem uma lagrimazinha nos cantos dos olhos, um suspiro pesaroso, uma melancolia pungente…
— Talvez seja… não, melhor não falar isso.
— Fale. A coisa não pode ficar melhor… pior… hum… mais grave do que já está.
— E se for felicidade crônica?
— Não diz isso, por favor. O que aconteceu com aquela ideia de que a felicidade é efêmera, nunca dura, dissipa-se com a mesma facilidade que nos assola? Eu não quero viver assim. Não vou suportar o bom humor matinal, o sorriso no ônibus, o mundo com cores vivas e alegres. Quero o cinza do meu quarto, quero os passos taciturnos, o andar cabisbaixo… Já nem sei mais quem sou! Horror, fim dos tempos! Faça alguma coisa, cara!
— Olha… Eu não sei se vai ajudar muito, mas, certa vez, li num livro que no século XX houve uma epidemia de amor pelo mundo.
— Amor? Você quer dizer, amor, amor mesmo?
— Sim. As pessoas se amavam, dá pra acreditar nisso? Eu não consigo nem conceber a ideia de viver num mundo com amor, é surrealismo demais para minha cabeça.
— E o que aconteceu?
— Oras, as pessoas se curaram disso, obviamente. Por isso, fique tranquilo, meu chapa. Daqui a pouco essa coisa de felicidade passa.
— Assim espero, amigo. Assim espero.

(Fonte)