Isabel, a forte

tinha medo de morrer
de viver
de partir
de mentir

de cochilar
de se abalar
de desilusão
de mel no pão

de ficar muito louca
da coberta ser pouca
de emagrecer
de não se ver

de partidas
de queridas
de tempestade
de tola saudade

de dizer bobagem
de ser só bagagem
de voltar a ser
de enriquecer

da vizinha
da galinha
do sapateiro
do juazeiro

do padre vil
do louco tio
da casa escura
da cama dura

do novo ano
de seu fulano
do remédio
de seu tédio

de não respirar
de muito amar
dessa solidão
daquela canção

das novas dores
dos sem-sabores
da luz cheia
de nua e feia

do pesadelo
do fim do novelo
de todas as prestações
das quatro estações

do prédio a ruir
do banguela a sorrir
da perna inchada
da criança mimada

do pêlo eriçado
do castelo encantado
do fim de tarde
do beijo que arde

de ter de perdoar
de ter de só lembrar
das anotações
das exclamações

do efisema
do teorema
do último cigarro
da morte no carro

de câncer no estômago
da dor oculta no âmago
do silêncio à noite
da voz qual açoite

de escrever no caderno
de cochichar ao Eterno
de quebrar o giz
de nunca ter sido feliz

de cometer erros
de engolir berros
de cair da cadeira
de não ter maneira

de não lembrar mais
de chorar demais
de não existir
de ter de insistir

de morrer no açude
de quebrar o alaúde
de ao chão tombar
e não querer levantar

de dor de barriga
de intriga da amiga
daquela dura lembrança
de não poder ser criança

do nome ser esquecido
de só ter pão amanhecido
da nuvem escura
da virgem impura

de conta-gotas
de mãos postas
de se despedir de mim
da alegria sem fim

de escurecer
de me entrever
de sair da cama
de deixar a quem ama

de castelo de areia
da brisa fagueira
da noite sem sono
das folhas no outono

do parente distante
do silêncio oscilante
de desfazer-se em pó
de continuar sendo só

seu nome era Isabel, a forte
mesmo tendo medos
— até da morte —
saía cedo da cama todo dia
e descia a rua assobiando
sua assustada alegria

manhã sem outono

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mantenha os olhos abertos
nas trevas desta manhã
e silencia o grito impensado,
aquieta a cabeça e ouça:

os rumores lá fora dizem que
não há mais esperança ou nuvens,
mentiras renovadas no bairro,
meninas correndo de medo

de um tal homem perverso,
de um bebê abandonado,
de outro dia que ameaça chegar,
o distante badalar da capelinha.

as trevas ainda permanecem
sobre as rugas de teu rosto
tão jovem cansada, tanto tempo,
querem os olhos ver mais (?)

o indefinido suspiro no sótão,
a silhueta no umbral da porta:
os vizinhos? estranhos? viajante?
ou o homem perverso, o tal?

balança a velha cadeira que range
como os pensamentos envilecidos,
como a mandíbula roendo unhas:
tudo inútil, vão, diz o pregador.

conforme-se, então, com o dia sem luz,
de porta entreaberta, sopro de vento
na cortina que esconde aranhas,
na poeira que conta abandono,

sorrindo a alegria só de memória,
tão encardida quanto a saia.
os pés frios, as mãos trêmulas:
não haverá outro dia assim.

(scs, 4912)

anjos e baratas

Era um nome forte, que dizia que ela era uma mulher forte, sem medo, de enfrentar perigos e dificuldades sem tremer nem fugir. Durvalina. Talvez por ser parecido com Durval, nome de seu pai, que é nome de homem. Homem deve ser sempre forte, valente, que até vai atrás do problema só pra vencer o bicho. Sem medo.

Nada mais falso. Celina Durvalina tinha medo de tudo, principalmente de barata e de anjo. Que escândalo cada vez que vê uma barata! Aquela coisa marrom se movendo rápido deixa Celina Durvalina em pânico, louca, insana. Ela sobe na cadeira e, nem sabe porque, arranca a roupa e grita e grita até desmaiar, às vezes. Agora ela já sobe e desce da cadeira antes de desmaiar, pois uma vez caiu e foi parar no hospital. Quase morreu. Ela não entende: ela entende que a barata é pequena, quase nada perto dela, mas o monstro cheio de patas a mantém prisioneira, faz dela o que quer, ordena coisas impensáveis: gritar e arrancar a roupa.

E quando uma barata passou correndo sobre o pé de Durvalina? Por sorte o machado era muito grande e ela, muito desajeitada. Não conseguiu cortar o pé, mas gritou e arrancou a roupa e deixou o pé de molho na água quente com sabão três horas.

Baratas. São sinônimo de pânico, de desespero, de falta de ar. Muito medo de ser estrangulada por aquelas patinhas de serrote. Consegue sentir o cheiro delas e ouve seu barulhinho de correr em silêncio da luz. Por que Deus havia feito aquelas coisas que estalam e soltam gosma quando são pisadas? Nem mesmo morrem de modo decente, discreto, desnojento.

De anjo também. Muito medo. Pavor mesmo. Mas nunca viu nem sabe se existe. E morre de medo.

Celina Durvalina deveria ser forte, como exigia seu nome na certidão de nascimento registrada com data de cinco dias depois. Talvez ela fosse o outro recém-nascido do berçário. Trocas assim acontecem sempre, 32% mais no último ano. Ela não era aquele nome; então, ela não podia ser ela. Quem era, então?

Ela gostava da rima. Achava bonito ser chamada por todo ele. Celina era a parte delicada, fofinha, alguma coisa a ver com céu. Celina, sei lá. Mas, não entendia, todo mundo preferia Durvalina. Se ao menos fosse Lina. Alguns até preferiam Durva ou Durval. Ela tinha de ser forte. Ou pensavam que ela fosse. Não era. Tinha sempre muito medo. De muitas coisas.

Cada trovão um susto. A buzina de um carro fazia olhar quase atropelada para os lados. Todo latido era de um cachorro (lobo) raivoso pronto para estraçalhá-la sem oração. O choro da Viviana era sinal de que ela estava se engasgando, e lá ia ela correndo salvar a filha da comadre. E assim vivia, sempre assustada. Se perguntava por quanto tempo seu coração conseguiria suportar aquilo. “Vou morrer na próxima semana”, pensava toda semana.

Depois de limpar a cozinha, em lugar de tomar seu cafezinho bem doce ouvindo o programa das 14 horas no rádio, resolveu olhar um armário velho no quintal. Ele estava lá há muito tempo. Celina o via, mas nunca se animou de mexer nele, apesar de sua mania de limpeza. Mas agora achou que ele estava enfeiando o quintal, apesar dos vasos com flores em cima dele.

Olhou-o com calma, pensando se poderia oferecer algum perigo. De madeira, verde clarinho, desbotado e sujo, um puxador quebrado, uma chave que não impedia que fosse aberto por qualquer criança. Parecia inofensivo. Inerte.

Abriu as portas num ímpeto. A luz forte da tarde revelou umas roupas antigas, uma boneca quebrada, uma capa de revista mofada, um rato morto e baratas. Muitas. Antes de dar um salto imenso para trás, Celina Durvalina Fortes pensou ter contado um milhão delas ou muito mais.

Caiu de costas, batendo com o ombro no chão. A dor forte a impediu de começar a arrancar a roupa. A garganta se entupiu de desespero e nenhum grito pedindo ajuda saiu. O coração batia audivelmente e as baratas vinham em sua direção, como um exército implacável, abrindo suas alas de forma a cercá-la por todos os lados, com certeza para devorá-la viva. As patas de serrote marchavam com ritmo, declarando que seu fim estava próximo. E iriam roer sua roupa também.

De repente, uma luz forte, de um branco cristalino, azulada, em forma de espada, surgiu ao lado de Celina. Girou em redor dela, baixinho, rente ao chão, atingindo todas as baratas, até as da retaguarda do exército, cortando-as ao meio com um barulho metálico e de fogo. Nenhuma delas escapou. A espada, então, se ergueu sobre Celina, e ela viu uma mão robusta segurando-a e viu como se duas grandes asas, transparentes, de luz azulada também, se abrissem. E tudo sumiu. Celina estava sozinha, caída no meio do quintal, o armário com as portas abertas e nenhuma barata. Nenhum cadáver de barata. Nenhum sinal de que elas estiveram ali.

Durva é seu nome agora. Celina é passado, nome de quem tem medo de tudo. Durva não tem. Mata as baratas com rapidez, sem nojo nem dó. Até sorri ao ouvir o estalo e ver a gosma. Calou todos os lobos, xingou a comadre que não cuida direito da Viviana e canta enquanto ouve trovões. Só tem medo de anjo.

(scs, 21221011)

(fonte da foto)