epidemias (ou pequena discussão desimportante sobre a felicidade) (Raphael Cardoso)

THE SPECTRUM FOR HAPPINESS.jpg The Spectrum for happiness, Leonid Afremov

— Vim assim que pude. Você me pareceu tão preocupado ao telefone.
— Desculpe tirá-lo assim do serviço, amigo, mas eu não sabia a quem mais recorrer.
— O que aconteceu? Fale-me logo antes que eu tenha um treco.
— É… é que… eu acho que estou feliz.
— Fffe-feliz?
— É. Eu acho que sim…
— Mas… tem certeza, amigo? Felicidade? Tem certeza que não é asma? Reumatismo? Cólica? Como isso foi acontecer, meu Deus? Desde quando você está sentindo isso?
— Não sei bem ao certo. Lembro-me dum dia em que ele desceu do ônibus… Foi nosso primeiro encontro à luz do dia; só tínhamos nos visto à noite antes disso. E, subitamente, parei, extasiado, e disse “Você tem olhos bonitos.” Desde então, acho que os olhos dele me fazem feliz.
— Que horror, meu amigo. Feliz por causa duns olhos.
— É, eu sei.
— Você já contou para sua família?
— Não! Claro que não. Como posso chegar para minha mãe e dizer: “Oi mãe. Estou feliz, você acredita nisso? Sim, isso. Felicidade mesmo.” Ela me coloca pra fora de casa só com a roupa do corpo.
— Você precisa se tratar. Procurar um médico, ver uns filmes do Lars Von Trier, ouvir Antony and the Johnsons…
— Não adianta. Nada disso. Ontem à noite, fui para a cama com uns poemas do Bandeira. Daqueles que parecem navalha cortando a alma, sabe? Nada. Nem uma lagrimazinha nos cantos dos olhos, um suspiro pesaroso, uma melancolia pungente…
— Talvez seja… não, melhor não falar isso.
— Fale. A coisa não pode ficar melhor… pior… hum… mais grave do que já está.
— E se for felicidade crônica?
— Não diz isso, por favor. O que aconteceu com aquela ideia de que a felicidade é efêmera, nunca dura, dissipa-se com a mesma facilidade que nos assola? Eu não quero viver assim. Não vou suportar o bom humor matinal, o sorriso no ônibus, o mundo com cores vivas e alegres. Quero o cinza do meu quarto, quero os passos taciturnos, o andar cabisbaixo… Já nem sei mais quem sou! Horror, fim dos tempos! Faça alguma coisa, cara!
— Olha… Eu não sei se vai ajudar muito, mas, certa vez, li num livro que no século XX houve uma epidemia de amor pelo mundo.
— Amor? Você quer dizer, amor, amor mesmo?
— Sim. As pessoas se amavam, dá pra acreditar nisso? Eu não consigo nem conceber a ideia de viver num mundo com amor, é surrealismo demais para minha cabeça.
— E o que aconteceu?
— Oras, as pessoas se curaram disso, obviamente. Por isso, fique tranquilo, meu chapa. Daqui a pouco essa coisa de felicidade passa.
— Assim espero, amigo. Assim espero.

(Fonte)

felicidade (Vicente de Carvalho)

Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada:
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa, que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim : mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.

A mala

carrego comigo
numa mala pequena
muito gasta e suja
lembranças dos dias
felizes
que um dia tive.
mas a mala é um peso
incômodo
e a abandono vez após vez
num banco de praça
num ponto de ônibus
em cima da ponte
debaixo de pedras
na grande fogueira
no cume da colina.
e quando recomeço a caminhar
lá está ela
pronta a seguir comigo
a mala pequena
muito suja e gasta
carregada de lembranças
dos dias
felizes

(scs, 2511)