retrato

uma antiga foto amarelada
datada de 1829:
uma família: pai, mãe,
três filhos: uma menina, dois meninos:
tristes, sem sorrisos, alma amarelada;
menina ao lado da mãe,
tranças compridas sobre o vestido branco,
mãos sobrepostas, sapato branco, meia branca,
uma flor branca no cabelo,
conformada com não ser ninguém
sem existir de verdade
nenhuma alegria;
meninos ao lado do pai,
vestidos com roupas iguais,
com igual ódio nos olhos,
calça escura, camisa clara, casaco daquele veludo antigo de velório, escuro aberto,
gravata fininha, mãos para trás,
vida para trás, incompleta
bico do sapato gasto, cabelo curto ridículo,
ombros caídos (com o precoce peso da vida)
a mãe
uma mulher que um dia foi bela e acreditou que sempre seria
e no amor que sempre seria e em suas obrigações
na vida que dedicou – cabelos brancos, rugas, mãos angustiadas, boca sem…
num vestido comprido, de muitos babados
simetricamente arrumado
que não parecia dela (ou ela)
seu olhar olhava para o nada, vazio
nem triste nem satisfeito, apenas nada
(mas uma senhora plenamente cônscia de suas responsabilidades
e deveres e do nome do marido)

e o pai
orgulhoso

Restaurante I

mesa grande
oito pessoas
arroz
toalha branca
saladas
carne
sem gelo sem açúcar
molho saudável
não tinha vindo aqui ainda
carne mal passada
gordura
experimenta isso!
notícias
feijão no dente
palito de dente
falar de boca cheia
queijos
o bife tá frio rijo
famílias
criança vira o copo no colo da mãe
hipocrisia de domingo almoço feliz
tô sem fome
cebola
salmão
pimenta. não arde
palmito
aipim ou mandioca?
não brinca com a comida!
tv inoportuna
pastel tempurá
molho acridoce
coraçãozinho de frango?
carne
talheres raspam o prato
gordura
ali, à esquerda
refri. arroto. desculpa! riso
sobremesa light
pavê ou pacomê? cunhado idiota
começo regime na segunda
caixa
café ou chá?

logo estaremos de novo com fome