Só ouvi silêncio


O frio me despertou. Ou tentou. Meus olhos não conseguiam abrir o suficiente; eu só via umas luzes amareladas, indefinidas, uma de cada lado de mim, fixas no ar. E havia uns vultos. Minhas pálpebras mal se abriam, a imagem embaçada, os cílios desfocados, apesar de meu enorme, mas fatigado, esforço por abri-las de todo, e se fechavam de novo, mergulhando-me em escuridão marcada pelo tom róseo provocado pelas luzes lá fora.

Minha mente estava agitada, confusa. Eu não sabia onde estava, não lembrava meu nome… Meus pensamentos pareciam não recordar coisa alguma com precisão: nenhum rosto amigo, nenhum nome pelo qual chamar, nenhum cheiro gravado na memória… Minha mente parecia uma grande caverna escura, na qual ecoavam umas poucas palavras gritadas por alguém, as quais a nenhuma criatura despertavam. Parecia só haver ali a sensação de frio, a de ausência de memórias, a percepção de luzes… e de que eu não estava sozinho.

* * * * *

A tarde começava a cair, trazendo uma brisa fria que derrubava sobre a grama mais flores da grande paineira branca diante da casa. Olhando pela janela ocasionalmente, ela começava a se preocupar. “Ele já devia ter chegado. Tá ficando frio: não levou um casaquinho.” Mas olhava o grande relógio de parede e se acalmava, ou tentava. “Só faz meia hora que ele saiu. Ficou conversando, na certa. Quando começa a falar de história, esquece da vida!” Depois de mais uma olhada pela janela em direção à calçada, passou os olhos pelas belas flores brancas da árvore e voltou às tarefas na cozinha, pensando: “Calma, ele já vai chegar. E o frio mal começou.”

* * * * *

Os olhos agora pareciam me obedecer mais. Consegui abri-los e assim mantê-los por alguns instantes. Eu estava deitado de costas em algum lugar frio. Sobre mim, um impressionante céu estrelado, sem nuvens, com exceção da que mais ou menos ocultava a Lua. Mas havia outras luzes próximas. Virei os olhos para ambos lados (parecia-me que não conseguia mover a cabeça nem o restante do corpo…) e vi dois lampiões com sua luz amarelada. Alguém segurava cada um deles à altura do rosto, mal me permitindo notar alguma característica. A mão que segurava era pequena, de pele muito clara. E os cabelos eram ruivos, abundantes. Havia a meus pés dois outros vultos, mas meus olhos se fecharam mais uma vez, contra a minha vontade, antes que os conseguisse discernir.

* * * * *

O homem, como acontecia sempre que estava sentado em sua cadeira diante da mesa cheia de papéis e de várias canetas sem tampa, tinha à sua frente uma xícara de café com um biscoito de maisena apoiado sobre as bordas. Ele considerava a combinação irresistível. Claro, tinha consciência de que não era nada saudável e que garantia o tamanho exagerado de seu abdome e seu sono constante. “Preciso parar com isso e fazer ginástica”, pensou pela vigésima vez naquela semana que mal começara enquanto tirava farelos de biscoito do vasto bigode grisalho.

Embora o corpo não ajudasse muito, ele tinha a mente muito ágil, muito perspicaz, atenta a detalhes e com impressionante capacidade de memorizar informações e de relacioná-las. Por isso, havia escolhido a profissão de delegado. Gostava de procurar pistas, de levantar hipóteses, de descobrir contradições. E de fazer com que a justiça fosse satisfeita. Orgulhava-se do que fazia.

O estridente telefonou de baquelite preto tocou em sua mesa.

– Delegado… – foi logo interrompido por uma voz desesperada.

– Como vai a senhora?

– Eu lhe peço que se acalme e fale com vagar –, pediu. Ele gostava de usar linguagem mais formal em serviço.

– Sim, sim, por certo que eu o conheço. Já lhe devo ter cumprimentado. É um…

– Há quanto tempo isso ocorreu?

– Veja bem, minha senhora. Compreendo sua angustiosa preocupação, totalmente justificável, mas isso ainda não configura um desaparecimento. É preciso que se passem 48 horas e…

– Sim, sim. Não estou de modo algum desprezando seu instinto maternal – procurou dizer isso de modo muito cortês, para não ferir quem estava do outro lado da linha. – Mas compreenda que isso não é suficiente para que…

Foi interrompido mais uma vez pela aflita voz. Aproveitou esse momento para morder o biscoito depois de molhá-lo no café e para fazer algumas anotações. Não havia nada de especial no que ouvia… mas havia. O policial não sabia explicar; ele simplesmente sabia. Ou desconfiava. Ou antevia.

– Para que a senhora não me julgue indiferente à sua aflição, vou anotar algumas informações, para o caso de que seja configurado o desaparecimento. Eu preciso de detalhes, por gentileza. A senhora mos pode fornecer? Seu nome completo? Nome completo do desaparecido?

* * * * *

De novo o frio me acordou. Dessa vez, porém, foi diferente. Eu parecia mais ciente dele. Eu sabia que eram principalmente minhas costas, em contato com uma superfície fria, que o sentiam. Consegui abrir os olhos de uma vez – quanto tempo eu permanecera desacordado? Ou apenas sonhando? Não sei dizer. A Lua e a nuvem que a cobria pareciam estar na mesma posição. As estrelas continuavam brilhantes. A meu redor não havia ruídos. Apenas os vultos e os lampiões, que não pareciam ter mudado de lugar.

Virei totalmente a cabeça para ambos lados. E agora consegui ver com clareza. De cada lado havia uma mulher, cuja idade eu não conseguia adivinhar, pois os rostos continuavam ocultados pelos lampiões. Além da farta cabeleira ruiva encaracolada e da pele clara da mão, eu via um vestido de uma cor clara, amarelada, talvez pela chama do lampião, que lhes descia até o tornozelo. Abaixo dele, pés descalços sobre uma grama baixinha, salpicada de belas flores brancas de cinco pétalas (por que me importei em contá-las?). As duas mulheres tinham a mesma altura, os mesmos cabelos fartos, a mesma cor de pele, vestidos iguais.

(Bem atrás da mulher que estava à esquerda eu via como que uma grande sombra ou um grande vazio. Não conseguia definir o que era. Assemelhava-se a uma distante parede escura, não muito alta, do que eu também não tinha certeza, mas de formas indefinidas, imprecisas. Talvez fosse alguma rocha ou uma colina que a pouca iluminação não me permitia ver com clareza.)

Voltei a cabeça de um lado para outro, verificando as visíveis semelhanças. Elas pareciam não se importar com isso, pois se mantinham imóveis, segurando o lampião na mesma posição, ainda impedindo-me de lhes ver o rosto. Embora eu soubesse, não sei como, que poderia me erguer (como sabia? Não sei.), não o fiz. Preferi examiná-las de onde estava mesmo.

Olhei em direção a meus pés. A pouca distância de mim, ali estavam um homem e uma mulher vestidos com roupas, ao que parecia, da mesma cor e do mesmo tecido usado pelas duas mulheres. O homem, de cabelos brancos e barba cerrada, mas curta, também branca, olhava-me com um sorriso estranho. Não parecia surpreso com minha presença ali; antes, parecia oferecer-me acolhida. Olhava-me sem se mover. Bem a seu lado, uma senhora da mesma altura, também de cabelos brancos, mal presos sobre a cabeça, olhava-me com o mesmo sorriso. Olhando de um para outro, percebi algo espantoso: eles eram iguais! Não exatamente iguais, pois eram claramente um homem e uma mulher, com traços bem característicos de seu sexo, mas, ao mesmo tempo, eram… iguais. Altura, sorriso, formato do rosto, o modo como inclinavam levemente a cabeça para a direita, largura dos ombros… Iguais!

Essa constatação me assustou, não sei por qual razão. Levantei o tronco com algum esforço, apoiando-me sobre os cotovelos. Olhei uma vez mais para cada um deles, que se mantinham imóveis, e abri a boca para lhes perguntar quem eram e onde eu estava… e nenhum som saiu. Sentei-me no chão e tentei falar mais uma vez, e só silêncio minha boca produziu. Fiquei atônito. Mais pensamentos confusos e vazios enchiam-me a cabeça. Meu nome, pessoas, cheiros, como viera parar ali… nada. Nenhum registro. Nenhuma memória.

Apalpei a grama a meu redor, sem nem pensar em porque, como se estivesse procurando fora de mim o que faltava dentro de mim. Senti apenas sua maciez e sua umidade. Senti que havia daquelas flores brancas para todo lado. Peguei uma instintivamente. Olhei para aquelas pessoas. O casal se entreolhou, e o sorriso em seu rosto se alargou por um momento. Logo voltaram a olhar com o sorriso simpático e incômodo de antes. As mulheres a meu lado não se moveram.

Tentei erguer-me. Senti-me fraco. Então, primeiramente, ajoelhei-me, apoiando as mãos diante de mim. A mente continuava vazia do que eu esperava ali encontrar. Respirei fundo várias vezes. Uma discreta brisa da noite fez-me sentir que minhas costas estavam úmidas. Aquilo pareceu me revigorar. Apoiei um dos pés no chão, apoiei as duas mãos sobre ele, ainda segurando a flor branca, como se pudesse me impulsionar para cima, e levantei-me. A nuvem permanecia cobrindo a Lua e se espalhando um pouco sobre as estrelas. O silêncio permanecia. As pessoas a meu redor continuavam imóveis: dois rostos sorrindo, dois rostos ocultos. Constatei que tinham todas a mesma altura… e que eram todas da minha altura.

Uma vez mais, abri a boca para dizer algo… e nenhum som se ouviu. Curiosamente, não me desesperei. Parecia que era o que devia acontecer e que eu já sabia disso de alguma forma. Olhei para as mãos sujas de orvalho e grama, com a flor branca entre os dedos, esperando que elas me ajudassem a dizer algo àqueles estranhos a meu redor. Toquei com elas minha boca, depois deixei-as um pouco afastadas do rosto e balancei um pouco a cabeça, tentando dar a entender que não conseguia falar.

As duas mulheres, ao mesmo tempo, num movimento sincronizado, moveram os lampiões para a esquerda, e lhes pude ver o rosto. Eram iguais! Gêmeas idênticas! Olhavam-me com seriedade, testa enrugada, sobrancelhas próximas, sem se importarem com meu evidente espanto que fazia com que virasse a cabeça sem cessar, buscando semelhanças, ou diferenças, entre elas. Ao fixar os olhos no casal, percebi traços comum às quatro pessoas que me miravam. A mesma testa, a mesma altura, o mesmo formato triangular de rosto, a mesma espessura das sobrancelhas. Eu diria que eram pais e duas filhas gêmeas… se não fosse a aparente (eu já começava a duvidar da exatidão de minhas conclusões) ou evidente diferença de idade. O casal parecia ter mais de 70 anos, as moças pareciam adolescentes, talvez 15, 17 anos. Não mais que isso. Não era impossível serem filhas dos idosos, mas era uma hipótese tão estranha (e o que não era estranho ali?)!

Atônito com tudo, sem a menor idéia sobre nada que estava ocorrendo, tentei dar um passo em direção ao casal. Senti a perna direita fraquejar, e, com uma agilidade surpreendente, logo o casal estava a meu lado: o marido (eu supunha que era marido) pegou-me no braço direito, com a mão direita entrelaçando meus dedos e com a mão esquerda sustentando meu cotovelo, e a idosa fez o mesmo do lado esquerdo, com a mão esquerda na minha mão e a direita em meu cotovelo. Senti-me compelido a agradecer-lhes e, olhando para cada um deles, abri a boca para lhes dizer “obrigado”, e eles só ouviram meu silêncio.

De modo muito suave, quase como se eu mesmo decidisse o que faria, eles me fizeram caminhar. Eu apenas cedia à orientação deles, que não pareciam ter pressa. Apenas empurravam levemente meus braços para a frente, fazendo-me andar, de modo meio trôpego, por uma picada quase imperceptível na grama, aqui e ali marcada pelas flores brancas. Ela parecia ter sido trilhada pela primeira vez há poucos instantes, por aqueles mesmos pés descalços que agora me faziam andar por ela. Vi que as duas moças, ao mesmo tempo, elevaram os lampiões um pouco acima do rosto, como que para iluminar o caminho à frente, e seguiam atrás de nós. O homem e a mulher por vezes trocavam um olhar, mas nada mudava em seu semblante. Ali estava congelado o mesmo sorriso desconfortável de antes. E caminhávamos.

Alguns metros depois do lugar onde eu acordara (não sei calcular a distância), viramos repentinamente à esquerda daquela muralha sombria, que permaneceu indefinida para mim. Era como um grande lençol preto que ocultava o que eu agora via. Logo à nossa frente havia uma mata fechada. Minha reação espontânea foi de parar, mas aquelas mãos delicadas, pressionando meus braços, me convenceram a continuar. Não sei dizer se elas me inspiraram confiança ou medo de desobedecer, mas não resisti. Parecia-me que não tinha muito poder sobre minhas pernas, como se aquele fosse o único caminho pela qual obviamente deveríamos seguir.

Conforme nos aproximávamos da mata, aquela que parecia uma parede vegetal impenetrável revelava uma estradinha, como a que havia na grama: recém-estabelecida, trilhada uma única vez por aquela… família (como chamá-la?). Ao lado de uma árvore havia um pequeno trecho, que logo se escondia por trás de outra e se descortinava mais à frente. Contornamos árvores, tive a impressão de estarmos caminhando em círculos outras vezes (afinal, todas as árvores eram iguais para mim), passamos por arbustos, e mais desvios pela frente e por trás de troncos de toda espessura. A luz da Lua, mal ocultada pela nuvem, nada ajudava, pois não conseguia invadir a copa das árvores. A luz dos lampiões, que também quase nada iluminavam no breu da noite, parecia ser o que guiava a família (?). Mas então percebi que, na verdade, conheciam aquele caminho muito claramente, que poderiam percorrê-lo, talvez, até de olhos fechados: conseguiam desviar-se de troncos, de galhos baixos, de pedras que eram invisíveis na escuridão.

Olhei para o casal que me amparava/conduzia. Olhavam para a noite diante de si, sabendo por onde andar sem necessitarem olhar para o chão. E estavam descalços. Como sabiam que não haveria pedras pontiagudas ou espinhos ou animais peçonhentos ou lugares escorregadios?

* * * * *

– Eu sei que alguma coisa aconteceu com ele!

– Não pense assim. Pensamento positivo. Tá tudo bem. Logo ele cruza o jardim e entra por essa porta pedindo desculpas pelo atraso?

– Atraso? Você chama isso de atraso? Faz cinco horas que ele já devia ter chegado! Cinco horas! Atraso de uma hora eu entendo; ele já fez isso antes. Mas cinco?! Ele?! Nunca! Ele sabe como eu fico preocupada. Ele se importa comigo… Ele sabe quanto tempo tentamos… Foi um milagre!

O marido a aproximou do peito, sentindo as lágrimas dela molharem sua camisa.

– Tá certo, tá certo… Mas vai ficar tudo bem. Eu tenho certeza. A gente já ligou para os colegas dele, já andamos por aí. Já falamos com o delegado. Está todo mundo de olho. Em cidade pequena como a nossa, é fácil achar alguém, ter alguma informação…

– Você me promete que ele tá bem?

– Claro, minha querida. Pode confiar em mim. Onde ele estiver, ele tá em boa companhia.

– Cinco horas! Onde tá meu filho?

* * * * *

Avançávamos ainda entre as árvores. Tentei calcular quanto tempo já se havia passado desde que acordei (e como eu havia ido parar lá?) e desde que entramos na floresta, mas não consegui. Não havia nada que me sugerisse o tempo. Por um lado, tudo se assemelhava a uma lembrança distante ou a um sonho confuso, em que os fatos se sobrepõem sem interrupção e muitas horas se passam em segundos; por outro, o cansaço que eu sentia, a fraqueza no corpo, a caminhada que não terminava, tudo me fazia pensar que essas coisas estavam acontecendo há muitas horas. E eu não conseguia pensar em nada que me ajudasse a medir de alguma maneira o que estava ocorrendo. Tentei contar os passos que dava. Logo me perdia e repetia números ou pensava em outra coisa por um instante e os números sumiam de minha mente. Então, eu só prosseguia.

Depois de circularmos um grupo de árvores de tronco fino e sem galhos até onde eu via, chegamos ao final da mata. Estávamos mais uma vez num gramado… exatamente igual àquele em que começamos a caminhada. Reconheci as mesmas pequenas elevações, umas pedras ocasionais, flores brancas espalhadas pela grama, até mesmo a sombria muralha à esquerda. Tudo era assustadoramente igual! E continuamos no mesmo passo, eu sendo amparado/dirigido pelo casal e as duas moças atrás de nós. Em silêncio.

Caminhamos muitos metros e, mais uma vez, viramos repentinamente à esquerda, depois da inexplicável parede de sombra. Diante de nós, à mesma distância em que antes havia a mata fechada, agora havia uma casa. Não muito grande, de dois andares, estava com a porta da frente aberta, pela qual via-se o crepitar do fogo em, talvez, uma lareira. Atrás de duas das janelas do andar superior via-se o tom avermelhado de alguma vela… ou de um lampião. As outras duas janelas estavam abertas, mas sem iluminação através delas, com cortinas brancas balançado para o lado de fora, embora eu não percebesse nenhum vento. Ao lado da casa, uma linda árvore de flores brancas, iguais às que havia na grama, iguais à que eu tinha na mão.

O casal parou e, por conseguinte, parei. Eles se entreolharam mais uma vez e olharam para mim ao mesmo tempo. Vi, um de cada vez, que a boca deles se mexia ao mesmo tempo em que os olhos e a inclinação da cabeça pareciam se referir à casa. Estariam falando? Eu não ouvia nada! Nada! Será que eu havia ficado surdo? Tentei dizer-lhes para que falassem mais alto ou que eu não os ouvia, mas minha mudez se manifestou mais uma vez. Voltei a sentir pânico, tentei largar-me deles para tentar fazê-los entender que eu não conseguia ouvi-los, mas as fortes mãos me impediram, ao mesmo tempo em que a boca de cada um não parava de se mover.

Então, eu percebi que não tinha lembrança de nenhuma voz. De nenhuma! Nem da minha. E como, então, eu sabia que tinha voz? E que eu deveria ouvir vozes? Será que o silêncio completo que tenho ouvido desde que acordei é por que sou surdo, sempre fui surdo? Durante a caminhada na mata, eu também não ouvi barulho de galhos sendo quebrados, de animais noturnos, do vestido das moças arrastando-se sobre as folhas caídas, dos nossos passos… Só ouvi um silêncio completo, só a ausência completa de vozes e ruídos.

Como eu quis acordar! Isso só podia ser um terrível, horroroso pesadelo! Sim, com certeza era! Mas quem era eu que sonhava? Onde eu sonhava? Ao acordar, onde eu estaria? E quem eu seria?

As mãos firmes me fizeram continuar caminhando em direção à casa. O mesmo silêncio nos circundava. As bocas continuavam se movendo. Os olhares continuavam sendo trocados. Os lampiões continuavam atrás de nós. O fogo lá à frente continuava a iluminar e a fazer sombras. As flores brancas caíam de quando em quando da árvore. E meus pés obedeciam sem que eu quisesse. E na mente nenhuma memória de nomes, sons, vozes, cheiros. Nada. Só do frio que me acordou, só da Lua tímida, só do caminho no meio da grama, só da caminhada.

Pouco antes da soleira da porta o casal parou. As moças saíram, exatamente ao mesmo tempo, de trás de nós, cada uma por um lado, e colocaram-se diante da porta, voltadas para nós. Permaneceram ali por alguns instantes, com os lampiões uma vez mais na altura do rosto. Então, simultaneamente, elas os baixaram, segurando-os com as duas mãos, com os braços estendidos em direção ao solo, como se tivessem cansado. Assim, o rosto delas assumiu um aspecto assustador, com aquela parca iluminação vindo de baixo, agravado pelo silêncio que imperava. O casal olhava fixamente para elas, sem afrouxar a pressão em meus braços. Minha tímida tentativa de soltar-me foi impedida por mãos ainda mais fortes. Os pulsos agora doíam, como se aqueles dedos de pele clara estivessem procurando encontrar meus ossos. As mãos que seguravam meus cotovelos garantiam que eu permaneceria ali mesmo, sem poder reagir.

As moças ergueram os lampiões, uma com a mão direita, outra com a esquerda, trazendo-os para o lado do rosto. O estranho efeito de meia face iluminada dava a impressão de que elas se uniam em um único rosto dividido por uma sombra. Elas abriram a boca e moveram os lábios. E eu ouvi! Eu ouvi! E soube que era meu nome. E vozes e cheiros e lembranças voltaram à minha mente. E meu nome! Sim, elas disseram…

* * * * *

– Você tem certeza?

– Absoluta. O guarda-noturno estava fazendo a ronda por aqui, do mesmo jeitinho metódico que faz todas as noites. A praça estava vazia, como costuma estar às duas da manhã no meio da semana. Ao passar por aquela calçada – o policial apontou para um ponto à sua frente –, o guarda viu uma coisa estranha… – e apontou para o banco diante do qual estavam, sem conseguir continuar.

O corpulento delegado olhou com certa pena para o policial. Era muito jovem para se deparar com coisas assim. Depois olhou para o banco por alguns segundos, tentando ligar as informações de que dispunha e o que via. Não conseguiu. Nada fazia sentido. Ele também nunca havia se deparado com uma coisa assim.

– O guarda afirma que não viu ninguém circulando pela praça? – perguntou. – A praça é bem iluminada. Apesar da nuvem escondendo a Lua, há um poste de iluminação bem aqui em cima. É impossível alguém chegar com…

O jovem cortou-o, meio nervoso.

– Sim, ele garante que não viu ninguém. Ele costuma dar duas voltas na praça antes de ir… de avançar para a outra quadra. E não viu ninguém nesse meio tempo. Eu o conheço há alguns anos, desde que se mudou para cá. É primo distante de meu pai. Um sujeito muito sério, que leva muito a sério o trabalho.

O delegado respirou fundo.

– E você tem certeza de que é…? – perguntou ao jovem colega, que havia virado de costas para o banco.

– Sim, senhor. A identidade dele estava no bolso da camisa.

– Lugar estranho pra isso…

– O nome é o mesmo dado pela senhora que ligou desesperada.

– Mas quando ela ligou, fazia só cinco horas que o filho havia desaparecido. Até a hora em que o guarda-noturno ligou para a delegacia, mais duas horas. E – estendendo a mão para o banco da praça – este corpo tem a aparência de que está morto há uns… dez anos! E o que é essa fisionomia congelada de surpresa? E como pode estar com as mãos nesta posição, com grama fresca nela?! E segurando uma flor branca que não está murcha?! E como veio parar aqui, sem ninguém ver?! Isso não faz sentido! – gritou, desalentado.

Nada fazia sentido. Nem o silêncio que se ouvia ao redor dos dois policiais. Ilógico silêncio.

(scs, 6223)