mais finito

depois, acenou com amor
uma despedida sem fim
enquanto o ônibus sumia na estrada

permaneceu como se seu olhar
pudesse trazê-lo de volta estar com ele
e já era só uma estrada vazia

e a vida agora era vazia
de uma saudade dolorida dos abraços tantos
e do abrigo entre eles
de promessas impossíveis
– mas o que importava eram só eles dois

então: veio a despedida
e ela ali acenando a quem já não havia
um coração desfalecido
a vida desocupada de razão
– tudo parecia mais finito que a estrada
infinita que os distanciava

– Mãe, vamo pra casa! Tô cansado…

não era possível viver de outro modo

(sc, sd)

De risos e morte

o homem,
de tão feliz,
ria sozinho noite afora
sem se importar
com os que
dormiam de tristeza
com as janelas fechadas
com o coração frio

e ria sua alegria desinteressada
pelas ruas e jardins
sem nem notar
a chuva que chorava
as mágoas de toda a cidade

ia rindo sua alegria descabida
pelas ruínas do velho casarão
de tantas memórias sombrias
e pelos corredores do hospital
de aleijados e parturientes
que pensaram, por um instante,
que podiam também rir

e seguia rindo ao lado do rio
entre homens magros e famintos
e mulheres exploradas (hematomas)
e crianças ranhentas jogando futebol
sem sorriso

e seu riso gostoso, intenso,
quase imoral
inquietou o ancião, que lhe jogou uma pedra e um deboche,
mas uma criança sorriu
uma mulher sacudiu-se rindo com a agulha na mão
um homem dançou com a muleta
a jovem na janela fechada ficou pensando se poderia…

sua insana viagem seguia;
dele, o homem que sorria,
a risada já ia longe
poluindo com sua leveza o ar de chumbo
daquela cidade mórbida:

deixava para trás
irados homens sórdidos
escandalizadas senhoras carolas que emudeceram o riso e a fé
muitos indiferentes transeuntes que não sabiam se estavam vivos
e
dois ou três loucos
que continuavam rindo e indo
enquanto a morte os perseguia
na cidade que morria

(scs, 13913)

sem título

o que era de fato
nem mesmo pensamos
no entanto sim estava
e por isso tão solene
como a noite e uma
gota de sangue ou lágrima
de toque macio e não
tão simples sendo assim
que surpresa já sempre
um anelo não uma ausência
de poucas cores mas doçuras
nem haveria em nenhum canto
o aroma de que fizemos
o outro sonho da alegria difusa
bem de manhã sem lençóis
piso frio caminha tonto
e florejam liláses a nuvem
miúda nos diz o Nome e
lembramos nada somos
só desejos e saudade

(sp, 25813)

outra

detive-me a te contemplar
outra manhã
e já eras
outra

ainda muito a mesma
no entanto
sim
no entanto, ali, sem sabermos
outra

foi a vida que se refez
mergulhada nos dias
passeios e loucuras
medrosos passos e
novamente feliz

e, então,
sem aviso, claros sinais,
eis-te
outra

(scs, 8813)

quantos

quantas coisas a noite esconde
em meus braços frios
nos pensamentos sem fim
confinado na estrondosa solidão desse quarto

quantos segredos espalhados pelas paredes
vislumbrando aquele passado já não mais inventado
de desenhos na areia do mar
um repentino aceno e o fim

quantos momentos aprisionados no relógio parado na cabeceira
gritando sua inexistente presença e dor
em cada conflito refeito e os medos
ainda mais meninos e não os há
– só as pegadas indistintas no pó

quantos carinhos amordaçados nos cabides
entregues ao desprezo e ao vazio
tantas manhãs de outrora: eram luzes
nem deles memória nem saudade

quantas madrugadas de anseios recatados
debruçadas na janela fechada
as nuvens distantes flertando com o desespero
refrescam seus cabelos de cinzas e remorsos

quantos outros navegam a mesma alma
ao revirar das lembranças desgovernadas
– a goteira é o único som consolador
na estrondosa solidão desse sonho inquieto

(scs, 8815)