a vida de minha pessoa

rio-me eu, cá nesse fundão, beirinha do rio
Lua, longe lá no alto, se ri também
de eu mais meu tanto de solidão
olho estreito de especular entende nada
de como é eu aqui e tão feliz

não me importo nem lhe explico
que sou um mais meu jeito de viver
duma alegria que nem sei mas há
cá nesse fundão, beirinha da mata
finzinho da vida que tão boa

nem tudo foram dor tormentosa
nem tudo se passaram como nuvem
noites de alegria e outras gentes vieram
e se foram e deixaram o buraco da saudade
e eu cá fiquei remexendo lembrança e
cinza no fogão à lenha e as marca
na pele e um calor no peito que vai se indo
pela estradinha aquela tão cheia de passado

rio-me eu meio triste, cá nessa casinha
cheia de tanto vazio do peito
os passarinho vão se calando –
o pio é desrespeitoso nessa hora –
e fico pensando em como nunca foi
a vida de minha pessoa

só ressinto cá no fundão do peito
um querer de estar travez com nem lembro mais
que se foi de mim e não sei o destino
não sei a graça – só um vazio correndo
como esse riozinho se indo deixando de ser

(scs, 31719)

mais

preciso poetar mais
a vida anda muito engasgada
na ponta da pena
anseios e assombros
não se entregam se não
sangrarem tinta
muitas paisagens se perdem só nos olhos
os sonhos desneblinam-se ao amanhecer
– o mundo é menor que as sílabas! –
só o poema pode guardá-los
vivos e tenros (eternos?)

Isabel, a forte

tinha medo de morrer
de viver
de partir
de mentir

de cochilar
de se abalar
de desilusão
de mel no pão

de ficar muito louca
da coberta ser pouca
de emagrecer
de não se ver

de partidas
de queridas
de tempestade
de tola saudade

de dizer bobagem
de ser só bagagem
de voltar a ser
de enriquecer

da vizinha
da galinha
do sapateiro
do juazeiro

do padre vil
do louco tio
da casa escura
da cama dura

do novo ano
de seu fulano
do remédio
de seu tédio

de não respirar
de muito amar
dessa solidão
daquela canção

das novas dores
dos sem-sabores
da luz cheia
de nua e feia

do pesadelo
do fim do novelo
de todas as prestações
das quatro estações

do prédio a ruir
do banguela a sorrir
da perna inchada
da criança mimada

do pêlo eriçado
do castelo encantado
do fim de tarde
do beijo que arde

de ter de perdoar
de ter de só lembrar
das anotações
das exclamações

do efisema
do teorema
do último cigarro
da morte no carro

de câncer no estômago
da dor oculta no âmago
do silêncio à noite
da voz qual açoite

de escrever no caderno
de cochichar ao Eterno
de quebrar o giz
de nunca ter sido feliz

de cometer erros
de engolir berros
de cair da cadeira
de não ter maneira

de não lembrar mais
de chorar demais
de não existir
de ter de insistir

de morrer no açude
de quebrar o alaúde
de ao chão tombar
e não querer levantar

de dor de barriga
de intriga da amiga
daquela dura lembrança
de não poder ser criança

do nome ser esquecido
de só ter pão amanhecido
da nuvem escura
da virgem impura

de conta-gotas
de mãos postas
de se despedir de mim
da alegria sem fim

de escurecer
de me entrever
de sair da cama
de deixar a quem ama

de castelo de areia
da brisa fagueira
da noite sem sono
das folhas no outono

do parente distante
do silêncio oscilante
de desfazer-se em pó
de continuar sendo só

seu nome era Isabel, a forte
mesmo tendo medos
— até da morte —
saía cedo da cama todo dia
e descia a rua assobiando
sua assustada alegria