par de meias

E ele nem sabia o que fazia ali, já que detestava manhãs frias fora da cama. E perguntas paradoxais. Como meias de cores diferentes reunidas como par na primeira gaveta no quarto escuro, pois não podia acender a luz e acordar a esposa e os pesadelos. Mesmo assim, tomou café frio, a manteiga havia acabado.

Parou no meio da calçada, cabelo despenteado se ajeitando com o vento e a fumaça dos ônibus, e um cheiro de cigarro vindo não sabia de onde. Era só uma criança ranhenta brincando com uma bituca jogada ao chão, calçada suja. Sorriu, pois de crianças curiosas sempre gostou. As de cabelo fininho e preto. Mas não ao ponto de ter filhos. Não tinha paciência. Nem lugar no apartamento. O condomínio aumentou esse mês e o elevador continua sem luz. Preferia ficar em silêncio por muitos dias. O ranho escorreu até a boca, mas a criança não se preocupava com isso. Etiqueta social é uma bobagem. Essa lição a criança havia aprendido sem saber. E, além de serem de cores diferentes, o tecido das meias era diferente também. E o elástico da bege não prendia direito. Talvez por ser bege.

Meia escorregando. Para arrumá-la, teria de ficar em um pé só encostado na porta da garagem. A grade estava muito suja. E não gostava de ficar em um pé só. Desde pequeno. Acho que tinha cinco. Só de polícia-ladrão. Sempre atirava à queima-roupa com sangue frio sem os dentes da frente. E a mão estava fria. Se tocasse na perna, sentiria arrepios.

Passou por ele uma moça perfumada, alta, ruiva. A saia era muito curta pra uma manhã tão fria. Que ridícula, mal sabe se equilibrar sobre o salto, com perfume barato, nem como desinfetante serve e deve ir pro trabalho assim, ofender o ambiente e servir de chacota para os colegas. O espelho deve ter-se quebrado e nem existe espelho pra perfume.

Puxou a meia rapidamente, limpou a garganta, pois nem precisou tocar na grade, pensando que fosse quarta. Mas era terça! Ou segunda? Quarta, com certeza, não. Então, posso voltar pra casa e trocar as meias. Como havia caminhado pouco, não precisaria jogá-las no tanque, só devolver à gaveta, a primeira, como se nada tivesse acontecido nem visto a moça nem acender a luz. O mercadinho ficava na outra esquina.

Decidiu seguir a moça ruiva, que andava ligeiro apesar do salto alto vermelho e do perfume barato. Atravessou a rua e logo entrou num prédio alto, cinza, que não combinava com a saia nem com o salto. Cumprimentou o porteiro e perguntou se ele sabia o nome da moça ruiva. “Não há moça ruiva alguma neste recinto, senhor!” Mas ela havia acabado de entrar e de cumprimentá-lo! E não havia mesmo ninguém mais ali naquele recinto. Nem o perfume barato. Pediu desculpas, pois confundiu alguém com uma amiga de infância.

Voltou para casa, pois a meia estava escorregando, agora a outra. Marrom. A bituca estava extinta, apagada pelo ranho escorrido e a criança juntava latinhas de refrigerante. Precisou acender a luz, para saber em que lado da cama deitar. Felizmente, a moça ruiva não acordou.

(scs, 221011)

a vida

não sei se concebo
a vida
como sorriso que se foi
como aceno sem sentido
como abraço sem calor

como alma debruçada na janela
como reflexo pálido na retina
como melodia desafinada

como passos inseguros na mata
como sol forte ao meio-dia
como o encontro do primeiro encanto

como esconderijo nos braços
como beijo doce nos lábios
como suspiro de cor-amor

como fantasma de um desconhecido
como confissões a um diário surdo
como sino que chora sozinho

como corrida sem fim
como oásis que se desvanece
como onda no mar frio

como pegadas na areia molhada
como suor na face cansada
como alento pelo último olhar

como pena que mancha o papel
como carta sem destinatário
como grito na madrugada

como retrato desbotado
como cadeira de balanço que geme
como janela que foi aberta pela manhã

como despedida constante
como cochilo sem descanso
como luta sem prêmio a ganhar

como espelho que reflete nada
como estrada já trilhada
como mina de ouro a jorrar lama

como pálpebras sem repouso
como doçura de flor e pólen
como repouso após amar

como o desterro do rebelde
como a cova do covarde
como a chuva que chora toda dor

como livro sem autor
como desenho nas nuvens
como sangue que escorre dos dentes

como tolice que escapa da boca
como dilema diante da luz
como risada que rompe o velório

como cisterna sem mais água
como dente que morde a língua
como gesto que censura a palavra

como esperança que se renova
como desejo que explode e arranha
como página virada e inédita

como a espera pelo último ônibus
como a travessia do leito seco do rio
como folha seca ao vento

como o corte na pele fina da moça
como a sombra que assusta e some
como o moinho que move o nada

como a pedra chorando do riacho
como o pássaro ferido, com medo
como o menino abandonado no casarão

como o chocalho sem dono na creche
como o sossego do velho casal
como a pimenta e o mel do lar

como o quarto revolto do jovem casal
como a mão nas têmporas em dor
como relíquia rara no fundo do armário

como medalha barata de honra ao mérito
como brilhante falso de um falso amor
como esmola dada a ninguém

como ouvido surdo à frase carinhosa
como cobertura sem gosto do bolo
como desassossego ao som do despertador

como pintura rupestre no ventre da grávida
como incenso queimando à chuva
como esquina que nunca chega

como olhos vazios vendo o incêncio
como brasas iluminando a noite sem nuvens
como animal atropelado à beira da rodovia

como doença esquecida que cria anticorpos
como receita caseira pra ser feliz
como louca gritando meu nome com voz rouca

como aperto na garganta com o final triste
como o começo da escalada
como o cheiro do vento passando

como vista nublada do alto do monte
como farol que some na densa neblina
como flecha que fere o alvo sem dó

como o desânimo ao fim do dia
como o descanso ao fim da jornada
como o orvalho sobre o corpo ao relento

como ar puro que explode em risos
como alegria nos braços de muitos
como a solidão entre tantos rostos

como falar sozinho olhando-se ao espelho
como ondas na água do lago
como pássaros fugindo do inverno, sem rumo

como suspense com o abrir da porta que range
como alívio do calor sob a chuva fina
como beijo roubado com sangue e saudade

como escadas a subir ao alto do monte
como campo de tulipas sob a luz da lua
como inseto que brilha com asas estendidas

como intenso delírio na festa sem fim
como sonho feliz que se rompe na aurora
como aromas confusos de campos de flores

como algemas de veludo nos braços indolentes
como pêlos arrepiados de frio e de desejo
como canção de ninar que acalma o bicho-papão

como dor no peito que não cessa
como preguiça de tentar de novo
como neve que cai nos cabelos brancos

como ponte sobre o riacho estreito
como abismo escavado nas rochas
como sombra fria sob a árvore morta

como caminhada silenciosa de mãos dadas
como marionete sem fios no palco
como o ruído baixo no assoalho do sótão

como sujeira entre os dedos
como desespero pelo futuro incerto
como o olho frio do tubarão-branco

como o trigo dourado que espera a colheita
como a força da água que esculpe a rocha
como o sol que se vai e deixa seu dourado no lago

como a ferrugem que corrói a coroa
como a neve pura e branca que se torna lama
como a nuvem negra que esconde a cidade em sua tristeza

como o tornado que revira teus cabelos
como o meteoro riscando o céu e logo não sendo mais
como casulo dormente embalado pela brisa

como reflexo impreciso de teu olhar na água
como o azul do mar que esconde tesouros e monstros
como lobo a viver sua solidão na pradaria cinzenta

como folha que o outono murcha e desbota, ainda que bela
como estação de trem com passageiros sem destino algum
como rocha inerte pintada pelo louco poeta

como passos na areia quente do deserto
como frágil grama que está ali ao sol por um pouco
como semente que nunca caiu na terra e permanece só

como cabana abandonada em uma montanha verdejante
como moça que espera na janela o homem que viu em sonhos
como água que maltrata a rocha que maltrata a água

como oceano que se lança da Terra plana em cascata sem fim
como aurora que se debruça no parapeito do teu olho
como peixe que busca ar no lago poluído

como navio que afunda tão perto do porto
como maçã mordida escurecendo abandonada no prato
como uivo para uma lua que se recusa a sorrir

como sorriso constante aos desconhecidos que passam
como joelho machucado que finge que não sangra
como planta solitária que abriga pássaros e produz um fruto.

não.
a vida não é
isso.

(scs, 23411)