grafite

Com um lápis amarelo na mão.

Ela sempre os segurava com carinho, como se fossem o dedo de um bebê. Bem apontado, terminava numa ponta muito fininha, que só permitia escrever suavemente, mal tocando no papel, quase deixando-o escrever desenhar rabiscar anotar sozinho. Do outro lado, a borrachinha cor-de-rosa, intocada, que nunca seria usada. Mesmo quando o lápis, impossível de ser utilizado ainda por causa de seu tamanho, fosse colocado amorosamente na caixa ao lado do cadáver-anão de outros lápis, a borracha estaria imaculada, virginal, íntegra desde que nascera.

E eram sempre amarelos os lápis. Uma cor forte, visível de longe, que enfeitavam a mesa como flores ou como penas de pássaro ou como fios de bordado. Eram deixados ali displicentemente dispersos, sempre onze, com uma difícil simetria em seu arranjo, um tecido de lápis e mesa em urdidura complexa, indecifrável para olhos e mãos que não amavam os lápis amarelos como ela. Não eram abandonados ou jogados sobre a mesa, mas deitados sobre ela, bebês amorosamente levados ao berço, mão sob o pescoço para que não acordem, uma ajeitadinha a mais para que estejam confortáveis e sem pesadelos.

Não gostava de amarelo. Não havia nada de amarelo em sua vida. Nem gema de ovo. Nenhum vestido, nenhum enfeite na blusa de festa, nada em seu computador ou na bijuteria chique que usava. Nem os post-its que espalhava pelo escritórios, escritos com sua caligrafia bonita com lápis amarelo, eram amarelos. Só os lápis. Aquele tom em especial a maravilhava, fascinava, acariciava seus olhos, uma paisagem dourada que não cansava de contemplar. Por isso, eram tratados com tanta dignidade, misteriosa volúpia casta, de mal tocar, um afago mínimo para reafirmar o amor e manter a dispersa ordem. Deslumbramento.

Tudo escrevia a lápis, sempre onze sobre a mesa, múltiplos tamanhos. Alertavam que lápis podia ser apagado, fácil falsificar, alguém podia modificar informações importantes. Não ouvia. Usava os lápis, amarelos, e fazia seu serviço a lápis e escrevia longamente a lápis e dava ordens e deixava bilhetes carinhosos a lápis. Apesar das ameaças, sua escrita era indelével, única, imorredoura. Seus lápis não tinham grafite: tinham diamante.

Nunca deu nome aos lápis. Seria demais, um exagero, esquisitice. Eles é que a chamavam pelo nome – Bebel –, inaudivelmente, mas ela os ouvia. E de pronto os atendia, tomando-os para escrever um novo relatório, outro bilhete, mais um poema erótico secreto que só ela entendia. Cada um deles, mesmo quando os onze falavam ao mesmo tempo, tinha uma voz diferente, bem própria, que revelava sua personalidade e seu uso. Não somente eram onze, mas cada um tinha uma função específica. Com aquele, apenas os bilhetes. Com este, nunca os poemas. Aqueloutro, unicamente os relatórios da presidência. Cá este outro, sim, as confissões no diário.

Dedicada como era, Bebel era sempre a primeira a chegar ao escritório. Com flores que dava a si mesma. Mas nenhuma amarela. Jogava-as de qualquer jeito no vaso (só sabia arrumar lápis), organizava os pequenos seres amarelos, suspirava uma canção de amor bem antiga a eles e passava a trabalhar. Sorridente, cantarolante, autoritária, maternal. O dia todo assim.

Então, naquela manhã, Bebel – Isabelina Marcondes Ferreirinha, solteira – morreu. Subitamente. Cabeça caída para trás. Com um lápis amarelo na mão. E outros nove sobre a mesa.

(scs, 231011)

dedicatória

a quem gostaria
de saber para onde o vento lhe leva
a quem baixa as velas
e rema sorrindo pelo oceano
a quem anseia
pelo copo de água fria no fim do dia
a quem desveste as luvas
e fura o dedo no espinho da rosa
a quem sonhava
logo antes do sol nascer
a quem confidenciou pecados
e ouvidos respeitosos os receberam
a quem desistiu
de sentir tristeza sem motivo
a quem correu pelas escadas
para repetir a boa-nova da prima distante
a quem escreveria
se houvesse amigo para receber a carta
a quem pressente
a chuva e a cor das nuvens
a quem insiste em voz baixa
que seu amor é falso e sua voz, rude
a quem procura
a última brisa da tarde
a quem abandonou o medo
e já dorme de luz apagada e coração disparado
a quem engatinha
no chão enlameado da cozinha
a quem picota papel
para a grande festa, e nem foi convidado
a quem rabisca
o nome dela no espelho embaçado
a quem se envergonha tardiamente
por ter espiado pela fechadura
a quem não dorme
para não estragar os sonhos
a quem ouve
o uivo do lobo no quintal
a quem não encontra os óculos
e deixa as letras fugirem do livro sobre o colo
a quem mergulha
e, deslumbrado, esquece de voltar
a quem aperta os olhos
e sorri ao vê-la de lingerie
a quem marca
na agenda o cruzeiro dos sonhos
a quem pensa fantasiando
que no Alasca poderá derreter iglus
a quem esconde
a maçã mordida e o dente que caiu
a quem prescreve abraços
ao amigo desencantado com Janaína
a quem borrifa
perfume nos pulsos e nas palavras ensaiadas
a quem fotografa árvores
solitárias no extenso campo do estou-aqui
a quem soletra
meu nome e erra todas as letras
a quem cochila à tarde
e esquece que o mundo não pára
a quem calou
e fingiu não ter visto
a quem abriu a geladeira
e gritou ao ver… lá dentro
a quem gemeu
e fez gemer
a quem desfila suas dores
e não é notado
a quem ainda não desistiu de começar
dedico.

(scs, 201011, dia do poeta)

dor de cabeça

estranha sensação
de não ser eu quem
está(ou) aqui
de outros pensamentos
ordenarem meus sentimentos
reações
uma estranha e entorpecente
dor de cabeça
um desconforto inexplicável
olhos indispostos a permanecerem
abertos
mente decidida a pensar de modo
confuso
e a vida circulando lá fora
– mene, mene, tequel –
arrastando mundos atrás de si
exigindo atenção,
sinergia, prazos, comprometimento, cartão-ponto

só queria poder parar um pouco
e ter certeza de que aquele
ao leme
sou eu
e que aquele na gávea
sou eu
e que aquele dormindo em paz
sou eu
e que aquele mergulhando com baleias
sou
e que eu é que sonho ou vivo
aqui

(scs, 111011)