Restaurante I

mesa grande
oito pessoas
arroz
toalha branca
saladas
carne
sem gelo sem açúcar
molho saudável
não tinha vindo aqui ainda
carne mal passada
gordura
experimenta isso!
notícias
feijão no dente
palito de dente
falar de boca cheia
queijos
o bife tá frio rijo
famílias
criança vira o copo no colo da mãe
hipocrisia de domingo almoço feliz
tô sem fome
cebola
salmão
pimenta. não arde
palmito
aipim ou mandioca?
não brinca com a comida!
tv inoportuna
pastel tempurá
molho acridoce
coraçãozinho de frango?
carne
talheres raspam o prato
gordura
ali, à esquerda
refri. arroto. desculpa! riso
sobremesa light
pavê ou pacomê? cunhado idiota
começo regime na segunda
caixa
café ou chá?

logo estaremos de novo com fome

Restaurante II

escrevi todos os meus segredos
– os mais sórdidos
os mais coloridos
os mais antigos
os mais vergonhosos
os mais esquisitos
os mais inebriantes
os mais felizes
os inventados
os que vão acontecer
os esquecidos
os teus
todos –
num guardanapo de papel
e o deixei sobre a mesa
do restaurante

(scs, 17711)

O lago

esqueci um livro na beira do lago
onde pescava nuvens
e pássaros azuis

na capa dura de meu livro
havia nuvens carregadas de sonhos
e pássaros com fome

o prefácio do livro que jamais li
terminava por espantar as nuvens
e os pássaros, feridos, fugiam

e nas muitas páginas daquele meu livro
nuvens destilavam tinta escarlate
que desenhava os pássaros azuis

não lembro seu título
as nuvens, eu as deixei soltas
os pássaros me levaram pra longe

o último capítulo do livro pra sempre esquecido
desfiz-me em nuvens de pranto e fuligem
e assustados, alegres, os pássaros azuis apenas voavam

(scs, 29511)

Homem pela primeira vez

depois que atravessou a rua,
pela primeira vez sozinho,
o menino não era mais menino,
pois quem atravessa a rua sozinho
já é homem feito,
senhor de seu destino,
do mundo
governante de calçadas-nações
capitão de intrépidas naus.

quando o homem feito
se viu do outro lado do oceano de asfalto,
pela primeira vez sozinho,
chorou alto e chamou
pela mãe.

(scs, 29611)

O amor dela por mim

Ela me ama.
Só não sabe como me dizer.
É tímida.
Tem medo de se jogar nos meus braços
aqui mesmo
diante de todos
e suplicar por meus beijos.
Seus olhos, suas mãos, seus cabelos,
tudo grita de seu amor louco
por mim.
– Fernando?
– Si-sim, fessora!
– Venha até a lousa fazer a tabuada do 2.
Ela faz qualquer coisa
pra que eu fique perto dela
e ela de mim.
Tímida.