um muitos

nem sempre sou eu que estou aqui
nas palavras que escrevo
às vezes sou eu,
o que gostaria de ser
vivendo num mundo ideal
quase sonho

outras vezes sou eu,
raivoso inquiridor
perscrutador da alma
irriquieto observador

há vezes em que eu tomo a pena,
o saudosista do tempo que não viveu,
das gentilezas às senhoritas,
que sente os aromas das flores que nunca colheu

mas eu também escrevo,
o que se vê nos outros,
que se pensa em alma alheia,
que se faz passar por mulher campo flor soneto suicida além

eu sou todos os eus
e mais outros
ou não outros
o mesmo
o único múltiplo
pluralma

(mc, 1999)

(fonte da foto)

indagação

e se a vida fosse só um espelho
olhando para o que não acontece
só imaginando o que deveria ser
rindo por fazer o espelho crer
que ele existe de verdade,
sem saber que nem o espelho existe
mas é só um sonho feliz e longo
da moça na beira do rio
que dorme sem fim

(mc, 1399)

espelho

a criança se olha no espelho
e se vê adulta
no mundo de depois:
deveres, salário, contas,
voto, despertador, hospital,
decisões, atas, encanador,
promoção, tese, fumaça,
engarrafamento, dilema, solidão.

a criança quebra o espelho
e vai brincar lá fora.

(mc, 2599)

(fonte da foto)

Este poema foi um dos vencedores do concurso Poemas no ônibus, da Prefeitura de Porto Alegre. Veja aqui.
Em breve, atualizo as informações e lanço um concurso pros leitores.

a ausência de tudo mais

De certo modo,
mesmo sem entender porque assim foi,
não me surpreendi de todo
com o que ocorreu.
Fatos inusitados há sempre e muitos
e diários, dentro e fora,
mão na garganta da rotina
até vê-la estirada, lábios brancos.
Mas não este, de certo modo.
Sem data na agenda, sem hora marcada,
não menos certo e pontual, contudo,
de compromisso assumido,
antigo britânico.
Sempre o soube
vindo, a caminho,
viajante decidido, sem olhar para os lados.

E o fato foi este:
não recebi convite
não fui comunicado
não ligaram para mim, madrugada, voz chorosa, fungando,
para… bem, a coisa:
minha morte, meu velório, meu sepultamento –
desfile silencioso de cochichos e olhar a paisagem
e reencontrar amigos parentes inimigos desconhecidos –
cova tal na quadra tal.

Não me quiseram avisar.
Não me queriam lá.
Mas mesmo assim fui. Achei que devia. Que era um direito meu.
Que eu merecia meu último adeus.
Na cara de cada um o incômodo com minha presença.
Olhares de censura
cabeças balançando
senhores levantando-se e ficando de costas para mim
num protesto surdo-mudo-calvo
as senhoras, relíquias da moral e do que é correto,
escondiam o rosto irado
em lenços grandes bordados, contendo-se,
em respeito ao falecido,
de vociferar muitas e tantas e cusparada.

Tudo vi. E entendia a todos, de fato.
Mas não podia não estar com
ele
essa última vez,
de pálpebras fechadas,
algodão no nariz,
boca sem sorriso, como sempre viveu – rara vez –
melhor fatiota – diria o pai
que fora muito antes.
Carregou-lhe o caixão,
chorou a despedida.
Guardou lembranças –,
mãos cruzadas sobre o peito,
segurando o coração que já deixou de sentir
e disparar e inquietar-se e ter paz e apertar.
Repousa um sono constante
sem movimento dos olhos,
sem sonhos lisérgicos,
sem sem achar posição,
sem travesseiro novo,
sem colchão de molas.
O mais desconfortável dos leitos
lhe parecia tão confortável,
tão apropriado e relaxante –
se soubesse disso
talvez quisesse ter morrido antes.

Não me aproximei demais
não queria ser visto mais do que a
etiqueta para tais ocasiões permitiria
que me aceitassem estar ali.
Olhava meio de longe
cada rosto, lágrimas, risadas, ausência,
lia nos lábios comentários, suspiros,
saudades, coisas que eu fizera em segredo
– um defunto perde o direito
de não ser dissecado, exposto,
virado do avesso em praça pública,
espalhado aos quatro ventos
com todos os detalhes –
e indiferença: amigo do amigo, vizinho, morador
do mesmo mundo.
Tantas visões diferentes
sobre um mesmo único defunto.
Quantos defuntos havia, então,
naquele confortável caixão?

O féretro prosseguiu,
eu por trás de todos.
Nem toquei o frio da alça da caixa de já-foi,
muitas mãos fizeram questão, disputaram
tal honra e mérito
(podiam fazer um rodízio,
meio minuto cada uma,
posar pra foto, mais uma,
postar no orkut, comentários, piadas…
Desculpe a irreverência, partido amigo,
não queria que fizessem isso comigo.)
Passo a passo
entre flores novas e murchas e velas
corroídas pelo fogo
“Olha lá! É o túmulo do avô da Matilde!”
pontos turísticos, anjos de concreto desplumados
olhando com seus olhos de limo e poluição os que passam,
sem poder alertá-los ou ajudá-los em sua dor.
A boca no chão já estava aberta
com seu bafo de terra molhada
e minhocas cortadas.
A seu redor espalha-se
a platéia, os convidados, os atores principais,
os canastrões,
as almas verdadeiras que sentem de verdade.
Cada mastigada lenta
da barrenta boca
tinha o eco oco da terra jogada
como se devolvessem a ela
tudo o que o prendia a esse mundo
e prendia todos a ele,
partículas dele em cada um.
Podiam todos descansar em paz,
trabalhar em paz, viver em paz,
mentir em paz, deixar-me em paz.

Todos se foram, a vida segue.
Mesmo os da dor real, da saudade legítima,
precisaram ir. Lentamente,
não querendo,
pesar por deixar-me ali sozinho
com as minhocas
e a terra
e as flores
e o sepulcro sem móveis só pra mim
e os vizinhos esquálidos, silenciosos, vazios de gente.
Fiquei eu só
a contemplar onde me puseram
para gravar bem o lugar correto
para não me enganar quando fosse trazer flores novas
para não me surpreender ao encontrar
chorando ali consternada
inconformada por eu tê-la deixado…

Minhas próprias lágrimas me silenciam.
Permaneço olhando meu sepulcro
longamente
com a luz do meio da manhã,
com a ausência de tudo o mais.
Só eu não vou embora.
Agora que estou morto
não há o que fazer.
Fico, então, ali,
me fazendo companhia
até que voltemos a nos ver.

(mc, 14119)

(fonte da foto)

partida

e nem poderia ser
de outro modo
já que em teu olho
não há
mais luz para mim

e se engana fácil
o coração
que, tolo e soberbo,
pensa amar ainda
quando nem mesmo mais vive

é só uma teimosia,
uma preguiça
de pôr fim ao que já não há,
de deixar ir o
já ausente
de há muito tempo distante

e de tanto ainda
querer e lutar
de não se permitir morrer
em paz
a dor aumenta e se torna sua alegria

um desejo estranho de
sofrer/fazer sofrer
mesmo insistindo em ser amor
não conhecendo-se ao espelho
nem na mão que pende sem força

que não responde, não acarinha
como a língua
que nada diz e não beija
como o coração
que não está mais.

(mc, 9119)

(fonte da foto)

barata

Havia uma barata no meio da calçada.
Esmago-a sem emoção.
Na verdade, confesso
com prazer de eliminar seu ser asqueroso.
(Terão alma as baratas?)
Agora carrego seus restos mortais,
sua lembrançalma gosmenta,
na sola do sapato.

Eu não matei a barata. Perpetuei-a.

(mc, 13119)

(fonte da foto)